Luiz A G Cancello
Apreciação de um fã encantado.
Dizem alguns eruditos que Isabel Allende não é uma escritora de escol, não faz parte daquelas consideradas top pelos acadêmicos. Devo ter alguma falha grave de formação cultural, pois li tudo o que ela escreveu, com admiração e paixão. E acentuo a última palavra, pois esta é marca da chilena. Creio mesmo que muitos intelectuais têm uma certa aversão aos autores apaixonados, e é isso o que brota de cada página de Isabel Allende.
O título do livro é uma frase de um poema de Pablo Neruda, ele também presente no enredo. A expressão descreve poeticamente a forma da Chile, longa pétala de mar.
O enredo começa na Guerra Civil Espanhola. Conta a história de um enfermeiro catalão, Vitro Dalmau, que atendia os feridos em batalha e depois emigra pra o Chile, num navio que o poeta contratou, através de seus contatos. O Winnipeg traria pessoas que, por suas posições políticas, cairiam nas garras do General Franco. Uma vez no país andino, o personagem passará por outra agrura, com a tomada do poder por Pinochet, e novamente emigra, para onde não direi, evitando spoiler.
O livro está cheio de personagens fascinantes. Destaco aqui Roser, que embarca com Vitor na primeira viagem, grávida de um filho de seu irmão. Isabel Allende é mestra em descrever mulheres fortes e decididas, e esta é mais uma delas. Outras aparecerão em meio à trama.
Aqui vai um trecho, onde se mostra a diferença de humor entre Vitor e Roser, depois da chegada ao Chile (p. 133):
Enquanto Roser imaginava um futuro luminoso, ele via sombras de todos os lados. “Aos 27 anos já estou velho”, dizia, mas Roser, se por acaso o ouvisse, dava-lhe uma bronca feroz: “Tenha colhões, todos passamos penúrias, e com essa história de ficar se queixando você não aprecia o que temos, mal-agradecido, do outro lado do mar há uma guerra espantosa, e nós aqui de barriga cheia e em paz, e já vou avisando que vamos ficar por muito tempo, porque o Caudilho, maldito seja, tem ótima saúde, e gente ruim não morre”. No entanto, enternecia-se nas noites em que o ouvia gritar dormindo. Então ia acordá-lo, introduzia-se em sua cama, abraçava-o como uma mãe e deixava-o desafogar-se de seus pesadelos com membros amputados, peitos destroçados, metralhas, baionetas caladas, poças de sangue, valas cheias de ossos.
A narrativa começa em 1938 e vai até 1994. Não é pouca coisa. A autora acompanha os acontecimentos políticos da Espanha e das Américas durante 56 anos, inserindo aí uma história de amores e desditas, num trabalho de pesquisa admirável. Se não é useira e vezeira no uso rebuscado da linguagem, segundo os já citados e chatos acadêmicos, é mestra e doutora em contar histórias com começo, meio e fim, algo talvez fora de moda para certa intelligentsia.
Isabel Allende começa a ser conhecida com “A Casa dos Espíritos”, em 1982, que aparece no movimento literário Realismo Fantástico, típico da América Latina. Os escritores desse período costumavam intercalar fatos sobrenaturais em meio ao cotidiano, numa dose pequena, mas decisiva. Mais tarde a autora, que é sobrinha de Salvador Allende, foi morar nos Estados Unidos, e lá escreveu muitos outros livros, alguns com o tema da imigração muito presente.
A escrita forte, com paixão, é típica dessa mulher. É difícil não se envolver com os sentimentos dos personagens. Chegamos a ter a impressão de que os conhecemos, talvez esbarremos com alguns deles no supermercado, sem grande surpresa. Se isso acontecer com vocês, passem um whats, vou lá correndo.