Livros antigos e releituras

Luiz A G Cancello

Vez por outra vejo amigos leitores e escritores exaltando a releitura de livros importantes, seja lá o que isso for. Não tenho esse hábito, embora tenha revisitado uns poucos volumes, por este ou aquele motivo. Mas não pretendo falar de critérios de escolha, assunto muito difícil e controverso. Prefiro comentar duas situações curiosas, puramente emocionais, que me instigaram a reler duas obras.

Nos anos 80 fiz alguns cursos na ABD, Associação Brasileira de Daseinsanalyse. Nesse lugar, de nome bem estranho para os leigos, reúnem-se os psicoterapeutas que seguem a linha de Análise Fenomenológico-Existencial fundada por Medard Boss, a partir da filosofia de Matin Heidegger. Eu poderia discorrer sobre isso, mas não é o que me prende aqui.
Lá conheci o José Luis. Conversávamos muito, fomos algumas vezes a bares para prolongar o papo, chegamos a frequentar as casas um do outro. Depois, com o tempo, nos afastamos. Ele mora em São Paulo, eu em Santos. De quando em quando sabíamos notícias um do outro, graças ao advento do facebook.
Em 2016 o Zé, um aficionado por cinema, convidou-me para prestigiar o lançamento de seu livro “O Bergman que vi com Heidegger”. Como se vê, não chega a ser uma obra destinada a ser best seller. Coisa pra iniciados. Mas não é disso que pretendo falar.
O lançamento ocorreu na Livraria da Vila. Lá fomos nós, minha mulher e eu. Reencontrei meu velho amigo, ocupado em autografar seu texto, mas reservando uns poucos minutos para as recordações e declarações de afeto mútuo. Nessa conversa perguntou se eu me lembrava de um livro chamado “As Coisas da Vida”, de um certo Paul Guimard, que ele havia me emprestado e eu jamais devolvera. Mas isso não importa, disse-me. Enfatizou que eu havia gostado demais de lê-lo e tinha recomendado a meu pai que também o lesse.
Eu não me lembrava de nada e, claro, fiquei muito curioso. No dia fui ao site da Estante Virtual, o sebo dos sebos virtuais. Lá estava o título. Comprei-o e comecei a reler aquelas linhas esquecidas. Fiquei decepcionado. Não vi nada de mais e não entendi o porquê de tê-lo recomendado ao meu pai. Pior: da perspectiva de hoje, tenho certeza de que não seria o livro a interessar ao “seu” Hermínio, de resto um bom leitor. Li até o fim, quem sabe reencontraria o encantamento perdido. Achei o texto meio chato e desinteressante. Não tenho a menor ideia do que senti e pensei na época.

Nos anos 70 morei no famoso Edifício Copan, no centro de São Paulo, no apartamento 303, bloco B, uma quitinete que eu dividia com meu irmão e um amigo. Esse período da vida daria muito assunto, mas não é isso que importa, agora.
Foi nessa época que entrei em contato com a obra do historiador das religiões romeno Mircea Eliade. Eu frequentava, há anos, um grupo de estudos de Jung. A obra de Eliade completava magistralmente tudo o que o suíço expunha. Li (e reli) “O Sagrado e o Profano”, “Ferreiros e Alquimistas” e outros livros.
Um dia, naquele tempo pré-internet, eu soube que, além de sua obra de historiador, o homem escrevia romances. Comprei “Minuit à Serampore” e li numa tacada. Depois descobri “Bosque Proibido”, um calhamaço de mais de 500 páginas, numa livraria carioca. Encomendei um exemplar e comecei a lê-lo compulsivamente. Uma tarde eu estava na quitinete, devorando as últimas 100 páginas, quando meu irmão chegou e começou a me arreliar. Lembro que tive um acesso de fúria e expulsei-o do apartamento. Ele, muito espantado, não criou caso. Nada no mundo me faria interromper a leitura. Acabei o livro extasiado.
Creio que emprestei o “Bosque Proibido” a uma amiga, o que ela nega até hoje. Não importa. O fato é que o volume sumiu. Uns anos depois resolvi relê-lo. Procurei em livrarias e sebos de São Paulo, em vão. Estava esgotado.
Nos anos 80 fui a Portugal. Procurei o livro em sebos de Lisboa e do Porto. Nada. Os livreiros sabiam que fora publicado pela Editora Ulisseia, a primeira edição era de 1963, mas nem sinal de um exemplar. O tempo foi passando e, vez ou outra, em perguntava a alguém se havia lido e se tinha o livro. As respostas sempre foram negativas. Acabei desistindo da procura.
Em 2016 o “Bosque Proibido” me veio de novo à cabeça. E agora já existiam a internet e a Estante Virtual. Abri o site e lá estavam vários Bosques Proibidos, uma Floresta inteira — e já não proibida. Na hora de comprar, um simples apertar de algumas teclas, hesitei. Procurei esse tesouro por décadas, gastei um bocado de sola de sapato, e agora ele estava ali, ao alcance dos meus dedos. A coisa ficou muito fácil e muito sem graça. Pensei, pensei e deixei a compra para depois. Até hoje não reli o romance do Eliade.

No caso de “As Coisas da Vida”, o sebo virtual foi uma experiência simples e prática. Minha curiosidade em ter novamente contato com o texto estava em primeiro plano.  
Quando chegou a vez de o “Bosque Proibido”, a facilidade em comprá-lo deixou a possível releitura muito sem graça. Não foi apenas a possibilidade de uma decepção que me travou os dedos. Foi mais que isso. Ao me deparar com o livro do Eliade na tela do computador, percebi que não era só o conteúdo do romance que estava em jogo. A procura já fazia parte do texto. Minha fantasia era encontrá-lo num lugar inusitado, numa livraria escondida em ruazinhas da Cidade Alta de Lisboa, ou deparar com ele na biblioteca de um erudito que eu conheceria de modo inusitado. Eu começaria a leitura num banco de praça em Portugal, ali onde o autor viveu 5 anos de sua vida e onde se passa boa parte da narrativa. Seria interrompido por uma chuva fina e continuaria a consumir as palavras numa tasca, aquecido pelo bom vinho lusitano.
Essas coisas, porém, só acontecem na ficção, e não é disso que trato aqui. Eu nem bebo vinho e escrevo apenas uma crônica, texto fugaz, raramente relido.

Agosto de 2017