Crítica publicada no Jornal “Correio Braziliense”, de Brasília, no domingo, 25 de fevereiro de 2001
CONTO (NÃO CONTO)
INICIATIVA EDITORIAL, CHANCE PARA AUTORES ESTREANTES, UM GÊNERO À PROCURA DE DEFINIÇÕES E CAMINHOS: HISTÓRIA EM TORNO DAS NARRATIVAS CURTAS
Lígia Cademartori
Especial para o Correio
Abre-se espaço para autores novos com a iniciativa da editora carioca Bom Texto. A notícia merece registro porque ninguém desconhece as dificuldades que enfrenta um autor desconhecido para ver seu texto publicado.
Raras são as editoras que se arriscam a lançar obra de autor que o público não conheça, principalmente se se tratar de literatura brasileira. 0 que torna, no mínimo, intrigantes as declarações de donos de grandes editoras, afirmando que recebem mais de 800 originais do gênero por ano. Quando se examinam os catálogos das ditas editoras, verifica-se que apenas um ou outro nome, dos tantos que enviaram textos, conseguiram romper as barreiras do mercado literário.
0 caso será de crise de talento literário? Não creio. Mas é possível que o problema resida nos mecanismos de escolha dos textos. Convenhamos, seria necessário um imenso conselho editorial, trabalhando com dedicação exclusiva, para conseguir ler e julgar mais de 800 textos por ano.
Por isso, não falta quem suspeite da prevalência de equidade no tratamento dispensado aos diferentes originais. Um candidato a autor, com nome que nunca se viu, ao desengavetar sua produção literária feita em alguma obscura cidade do interior do país e enviá-la à editora, sem o aval de alguma recomendação de peso, terá as mesmas oportunidades que outros cujos textos chegam precedidos de um teste anterior de mercado, indicação ou amizade?
Por essas e outras, é bem-vinda a iniciativa de qualquer editora que se abra para a revelação de possíveis talentos, quando o mercado se tornou a instância absoluta do surgimento e da legitimação das obras. O mercado editorial aposta nas grifes e isso funciona. Notem como vendem bem os livros ruins de autores que conseguiram se manter visíveis após ter tido algum sucesso!
Que o livro é também mercadoria, seria ingênuo ignorar. Mas, se não houver alternativas múltiplas, ainda que tímidas, ao sistema, se ninguém tiver a necessária ousadia para lançar nomes novos, mesmo que as obras e os autores não o sejam tanto, a nós restará a impossibilidade de ter algo mais do que já temos.
Após ter entrado em crise a fé na revolução e a construção de um sonho coletivo, o conto de 80 privilegiou o individual, a realidade do corpo, o desejo feminino. Conviveu com a linguagem da mídia, relação já iniciada na década anterior. Sentimento niilista, melancolia de causa perdida e vácuo de ideal deram o tom nessa geração.
Nos anos 90, o gênero voltou-se à afirmação das diferenças, incluindo o discurso das vozes silenciadas. Sob o signo da pluralidade e da diversidade, pôde-se perceber que a afirmação da individualidade não pode realizar-se em separado do coletivo. A dialética eu/outro marcou a produção do final do século, balizada por uma sociabilidade cuja base passou a ser o senso ético.
E, agora, o que virá? Há os que falam em exaustão de possibilidades. Mas a gente ouve isso há tanto tempo… Outros, ao contrário, acham que cairão por terra todas as definições do gênero. Surgirão outras. É início de era, podemos especular à vontade.
Que aventuras de linguagem irão trazer os novos contos, que relação será mantida com o ilusionismo de um mundo que se faz espetáculo? Como expressará o que, na vida de cada dia, claro e cortante a gente não diz? Só não vale vir com aquela história de evocar Mário de Andrade e dizer que conto é tudo o,que se chama conto. E preciso levar em conta o humor do modernista.
Outra questão que fica: terá o conto da nova década que surgir da ruptura, caminho necessário para fazer emergir o novo ou, neste século que se inicia, a própria noção de novo vai parecer obsoleta? É possível que continuemos sob o signo da simultaneidade e do espaço para todas as diferenças.
A editora que criou um novo selo para o lançamento de autores – Novo Conto Novo – começa por apresentar três autores: Luiz A. G. Cancello, Evangelina Barbosa de Moraes, Fernando Burjato. Dois têm mais de 50 anos; um ainda está nos seus 20.
Não se trata, portanto, do registro de expressões de uma geração nova de contistas. Além disso, os três nada têm em comum. O selo designa apenas um espaço aberto para que um número maior de pessoas publique.
UM A UM
Luiz Cancello, autor de A Carne e o Sonho, domina a técnica do tipo de conto que compõe. Não investe em novidades formais, usa linguagem cotidiana e conhece a força do essencial. Dispensa palavras a mais. Sabe como entreter o leitor com histórias ágeis. Algumas são divertidas. Outras, perpassadas pela ironia e por um leve sabor amargo que~ não se confunde com o peso do desencanto.
Tipos comuns, personagens corriqueiras, situações banais armam a relação de distância em que se escoram seus contos: o irremediável afastamento entre o ser e o parecer. São contos de feição muito tradicional. Realizam seus efeitos na surpresa do desfecho, no inesperado com que deve se defrontar o leitor.
Evangelina Barbosa de Moraes, autora de A Bóia Perdida, escreve contos de feição antiga, alguns de singeleza desconcertante. As narrativas ficam constritas no estreito universo da família burguesa, nas relações de tios e tias, primos, filhos, netos e avós. 0 lar é o claustrofóbico espaço das evocações e memórias, reduto da subjetividade e do afetivo. Faz lembrar o que disse, certa vez, José Miguel Wisnik: “No Brasil, estamos sempre a um passo de recuar para aquém do moderno.”
Fernando Burjato, em Cabeça, Corpo, Caveira e Alma, é dos três o que mais ousa na forma e na percepção do mundo. Recorre ao estranho, ao lado obscuro das coisas e pessoas para ambientar os relatos. Faz uso da pontuação à revelia da norma e rompe com as convenções de tempo, ação e espaço do gênero tradicional.
No entanto, usa torneios de expressão ao gosto do século 19 e, às vezes, chega muito próximo da escrita pomposa. Em seu livro, a voz do narrador sobrepõe-se a de qualquer personagem. A narração prevalece sobre a seqüência narrativa. Há contos em que o núcleo da trama é um quase nada. E quando, em algumas passagens, a narração torna-se difusa, quase cifrada, corre o risco de deixar indiferente o leitor. Burjato é um escritor em processo, que ainda experimenta, investiga. Mas já se mostra capaz de escrever um conto inteiriço, como o que abre o volume.
Sem dúvida, é muito cedo para se perceber qualquer tendência futura nas narrativas curtas, mas não será fora de tempo afirmar a importância de abrirem-se possibilidades para os novos. Ganhará em oferta o público leitor, a quem se impinge qualquer livro de escritor que esteja em voga, desses que viraram marca pelo uso esperto do marketing editorial. É claro que o leitor não permanece inocente nisso. Mas esse é tema que abre outra discussão. Deveria fazer parte da política das editoras – a ninguém se impede o direito de sonhar… – permitir inseminações na cultura brasileira ao apostar em novos autores que possam responder tanto à nossa fome de entretenimento quanto ao desejo de situar-nos nesse mundo desconcertante.