Crítica publicada no Jornal “Zero Hora”, de Porto Alegre, no sábado, 17 de fevereiro de 2001
Novo conto novo. Novo?
Uma coleção recém-lançada se propõe a revelar aos brasileiros as tendências na narrativa curta.
CÍNTIA MOSCOVICH
jornalista e escritora, autora de Anotações Durante o Incêndio (L&PM) e Duas Iguais (L&PM).
Em se tratando de contos, existe uma bússola cujo Norte é sempre representado pela figura de Edgar Allan Poe e sua afamada teoria da unidade de efeito. Não que se vá, aqui, arrolar tudo o que disse o autor de O Corvo. Mas se pode empreender uma síntese brevíssima: o (bom) conto, estrutura montada de maneira inteligente, possui um clima cuidadosamente premeditado, cada palavra servindo ao desígnio maior de criar naquele que lê uma impressão estética particular.
Ao colocar os olhos na coleção Novo Conto Novo, da editora Bom Texto, composta por três volumes caprichadíssimos – com direto a capa flexível, miolo em papel pólen soft e até, supremo luxo, escarcela – é impossível não considerá-la impressionante. Com o objetivo declarado de trazer à luz talentos inéditos, formando um painel revelador das tendências do novo conto brasileiro, a editora selecionou, durante nove meses, de um total de 80 originais, três autores: Fernando Burjato (Cabeça, Corpo, Caveira e Alma), Luiz Cancello (A Carne e o Sonho) e Evangelina Barbosa de Moraes (A Bóia Perdida). Claro que a empreitada é nobre e louvável; o resultado, no entanto, não deixaria Poe lá muito satisfeito.
(Segue-se uma crítica dura ao livro de Burjato)
A Carne e o Sonho, do paulista Luiz Cancello, traz textos que o autor preferiu chamar de “cronicontos” (“já que a própria crônica é um pequeno conto onde se narra a vida de alguém ou uma história de enredo indeterminado”, esclarece o release da editora). Além de bater na mesma tecla de vários escritores indecisos entre um gênero e outro, a classificação híbrida revela-se uma espécie de ressalva a priori, como a defender-se de possíveis escorregões narrativos. Já que os livros prescindem de bula, o pedido de exceção é inútil.
Roldanas, o conto que abre o volume de Cancello, é recheado por um tom cruel e violento, mãos dadas com a estética mundo-cão, mas sem os antológicos refinamentos que se encontram, por exemplo, em Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca. Narrado desde a ótica de um homem apaixonado pela finada sobrinha, que planeja a morte do ladrãozinho de várzea que a assinou, o texto soçobra pela aborrecida extração moralista. Pelas tantas, pergunta o personagem-narrador, no auge de seu ensinamento: “Posso chamar de bandido esse menino abandonado pela sorte, pelos pais, pela sociedade?”. Não, não pode.
Nos demais, vá lá, cronicontos (23 no total), o traço mais marcante é a ciclotimia. Há momentos em que Cancello consegue seduzir o leitor, impressionando-o com um jogo de ocultos bastante delicado, dando ênfase à nuança melancólica, com em Arraial e Chove -esses dois sendo exemplares do efeito expressivo do subtexto naquelas peças de construção mais burilada. Em outros, no entanto, principalmente quando tenta fazer humor, as narrativas descambam de maneira inapelável. Da prosa no mais das vezes insegura, Cancello parece não se importar com a linearidade dos narradores que institui (Bar Noturno), tampouco presta muita reverência às transições de tempo (Vidas de Cachorro). O saldo da obra de estreia deste músico e professor de psicologia é o desfile de personagens com pouquíssimos estofo humano, impermeáveis ao drama da existência e submetidas, ainda por cima, a desfechos insossos.
(Segue-se uma crítica dura ao livro de Evangelina)
Se a ideia da editora era elaborar um espelho da nova produção contística nacional, revelando três autores significativos, despendendo energia e pareceristas e o melhor de programadores gráficos, não se pode pensar que o resultado seja crível. A novidade formal-temática só é digna da aclamação se atingir um patamar estético convincente. Pode ser que a tendência do conto novo seja transcender o texto de lavra natural-realista ou o questionamento do status quo e outros similares. Mas isso só será sabido daqui a vários anos, quando se puder olhar criticamente o passado. Por enquanto, a régua e o compasso continuam sendo os de Poe: textos aramados, palavra a palavra, de maneira engenhosa, capazes de causa no leitor à impressão do Belo.