Livro: Joseph Anton – Memórias
Autor: Salman Rushdie
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2012
Li recentemente a autobiografia de Salman Rushdie, Joseph Anton, escrita antes que o atentado de agosto de 2022 o ferisse com alguma gravidade, causando-lhe perda da visão de um olho e a restrição de mobilidade de um braço.
A fatwa, sua sentença de morte proferida pelo aiatolá Khomeini, é o eixo central do livro. Proferida em fevereiro de 1989, a ordem do religioso iraniano pautou a existência de Rushdie desde então. O autor é nascido na índia e cidadão britânico. Como tal, tem direito a um plano de proteção à sua vida, elaborado e executado pela polícia da Inglaterra.
A dura ordem do aiatolá foi emitida a partir da interpretação de uma passagem de seu livro Versos Satânicos, onde os religiosos viram uma ofensa ao profeta Maomé. Essa leitura foi seguidamente desmentida por Rushdie, mas de nada adiantou, e a fatwa foi mantida.
O texto conta brevemente a infância do autor, que refere a si mesmo na terceira pessoa. Criado numa família muçulmana – ironias da vida – logo se desencantou com a religião, embora não deixasse de se intrigar com o fenômeno religioso, como se pode observar em sua obra literária.
A maior parte da narrativa, no entanto, prende-se a descrever uma vida constantemente protegida por agentes policiais, sem liberdade para andar livremente pelas ruas e sentar no bar da esquina para tomar uma cerveja. Esse modo simples de viver é almejado por Rushdie, que colide com as ordens dos policiais que o acompanham. A relação do autor com seus protetores é muito interessante, pois passa tanto pela amizade que se desenvolve mesmo na convivência forçada, como na irritação de ser impedido de levar uma existência cotidiana normal.
Em meio a essa situação bizarra, passam-se os amores pelas mulheres, a elaboração de livros, a convivência com os filhos, o encontro com outros escritores, as poucas ocasiões em que compareceu para receber prêmios literários. Quase todos os eventos de sua vida têm de ser cuidadosamente planejados, cercado de agentes, com tempo certo para começar e acabar. Em geral, o comparecimento do escritor a certas cerimônias não pode ser publicizado, seu aparecimento sendo uma surpresa, e logo ele tem de ser retirado do local, por medo de algum atentado.
O autor se esmera em retratar os sentimentos de seu personagem Rushdie, frustrações e momentos felizes, dentro de uma vida atípica, para dizer o mínimo. O livro é também um alerta para os extremismos religiosos, quando não há diálogo possível, e uma só interpretação dos fatos se torna absoluta, desqualificando qualquer outra dúvida ou ponto de vista.
É uma leitura muito interessante, prendendo a leitor a cada passagem. Entre tantas outras possíveis visões do texto, destaco uma: a capacidade de viver uma vida rica e produtiva, mesmo cercado de dificuldades e privação de liberdade.
Em tempo: a polícia britânica pediu a Rushdie que pensasse em um nome para usar como disfarce. Ele escolheu os prenomes de Joseph Conrad e Anton Tchekov, dois de seus escritores preferidos. Daí o título.