Luiz A G Cancello
Todas as famílias têm seus personagens meio reais, meio nebulosos, com pitadas de invenção. São figuras construídas na passagem do tempo, pela tradição oral. Cada geração omite ou acrescenta dados, a verdade vai se esfumando e resta uma lenda.
Na minha família paterna havia um desses seres arquetípicos. Archibald Nathan Smith era seu nome, bisavô de meu pai, portanto meu trisavô. Era um judeu inglês, que viera para o Brasil não se sabe por que motivo. Casou-se com minha trisavó, Amália Ludovica Xavier, de ascendência francesa, e tiveram uma filha, Carolina Smith, minha bisavó.
A família se orgulhava de descender de Archibald. Por ser inglês, emprestava aos descendentes uma aura de flegma e finesse; por ser judeu, o dom da inteligência. Certo dia partiu para os Estados Unidos, à procura de ouro, onde foi assassinado por um sobrinho. Há uma foto desbotada, impressa em metal, supostamente ouro, supostamente de Archibald e de seu assassino, em pose amigável, apesar dos semblantes sérios e de roupas formais, como convinha à época. Meu pai falava desse antepassado com certo orgulho.
No início dos anos 2000 interessei-me pela genealogia. Eu sabia que as raízes da minha família estavam no Estado do Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul. Em tempos ungidos pelas benesses da internet, filiei-me a um site especializado, My Heritage, e fiz outras buscas por conta própria. Cheguei a contratar o auxílio de um genealogista carioca.
Depois de muito navegar dei com um site gaúcho que pesquisava famílias, E lá estava o Archibald, casado com Amália, com a união documentada, citando o cartório e o livro de registro.
Pois bem, o homem não era inglês, era americano, “filho de William Smith e Sarah”, provavelmente nascido em Nova Iorque. Primeira surpresa. Não há, também, indícios de que fosse judeu. Para completar as revelações (ou decepções), meu irmão constatou que, à época de sua partida para os Estados Unidos, a corrida do ouro já tinha acabado.
Em quatro gerações a família tinha construído um personagem mítico.
A história tem desdobramentos. Na década de 30 do século XIX, três americanos – Thomas Henry Merry, João Jacob Dubois e Archibald Nathan Smith – apareceram em Pelotas, RS, e se casaram com três brasileiras, Cândida Isméria (Xavier), Clara Virgínia (Violante) Xavier e minha trisavó Amália. Há registros dessas bodas. Todos engravidaram as esposas e voltaram para os Estados Unidos. Não se sabe porque os americanos vieram, nem porque foram-se embora.
O My Heritage oferece aos membros a oportunidade (paga) de fazer um teste de DNA. O mecanismo do site cruza pedaços significativos do DNA de seus afiliados, levantando a possibilidade de parentescos, em geral distantes. Se as pessoas pareadas quiserem, pode se comunicar. Fiz o meu teste e, algum tempo depois, recebia informação de que uma americana, Lelia Mander, tinha pedaços de sua hereditariedade semelhantes aos meus. Entramos em contato. já não me lembro quem teve a iniciativa. Ela citou uma antepassada sua, Cândida Xavier, que esteve no Brasil e havia casado aqui. Logo traduzi o documento (com a ajuda do Google) onde constavam os casamentos dos americanos com as brasileiras e lá estava ela, Cândida, casado com Thomas. As três mulheres descendiam de Angelica Ludovina Girard e Antonio Xavier de Carvalho Basto, nossos ancestrais comuns. Depois disso trocamos vários e-mails. Quando Bolsonaro foi eleito, a Lelia me escreveu bastante alarmada, pedindo explicações. Logo nos identificamos politicamente e isso facilitou nosso diálogo. Faz tempo que não falo com ela. Vou pedir para me explicar os desmandos do Trump.
Archibald, enfim, não era inglês, não era judeu e não tinha ido à América buscar ouro. Se foi assassinado pelo sobrinho, ninguém sabe. Mas a busca por esse antepassado misterioso me trouxe uma prima e uma história saborosa.