Hipocondria política

Luiz A. G. Cancello

Existem dois Brasis.
Um Brasil é aquele das estatísticas, que leva desvantagem ao ser comparado com muitos países. Temos altas taxas de homicídios, de acidentes de trabalho e de trânsito, baixa produtividade na indústria, e tantos números a nos colocar em situação inferior. Não são apenas números; tudo isso é real, e dói.
O outro Brasil, que não e comparável, é o país em que nos coube nascer. Não o escolhemos. Forneceu a cada um sua língua, sua cultura, determinados modos de ser brasileiro — o modo de se relacionar com os filhos, os amigos, os amores. É a nossa morada, de corpo e alma.

Tomar esta posição como ponto de partida é compatível com a maneira como nos relacionamos com o mundo circundante e com o nosso corpo.
A diferença entre esses estados mentais fica mais clara se falarmos do surfista. No mar, ele simplesmente surfa, é uno com a prancha. Se parar para pensar, cai. Em casa, vendo a filmagem que a namorada fez de sua performance, pode fazer considerações objetivas, distanciadas: “Eu devia ter pegado essa onda mais pra esquerda.”
Pensemos ainda no nosso corpo. Na maior parte do tempo funcionamos automaticamente, sem atentar para braços, pernas, ou órgãos internos. Se algo está errado, se tenho uma dor na barriga, passo a olhar para meu estômago de modo objetivo, perguntando-me o que pode ter originado do desconforto. Claro, há os hipocondríacos, que vivem prestando atenção a cada detalhe do organismo, à procura de doenças.

Tento aqui distinguir o Brasil objetivo daquele outro, com que estamos envolvidos quando ouvimos um samba, ou tomamos sol numa de nossas praias, ao nos orgulharmos se um brasileiro se destaca no cenário internacional, quando torcemos para a seleção de futebol.
(Filosoficamente, forçando um pouco a barra, distingo aqui um Brasil ôntico e um ontológico.)

Escuto muita gente falando mal do país. Com alguma razão, se a fala estiver ancorada em meu primeiro tipo, objetivo, aquele das estatísticas e da grande mídia mal-humorada – e de algumas experiências ruins, como ser assaltado.
O discurso sobre o outro Brasil não comporta razão ou desrazão. Faz parte de nossa vida, é com ela co-originário. Nem mesmo é exato dizer que “faz parte”; sem esse pertencimento, nenhum de nós seria quem é. Não nos foi permitido escolher outro local de nascimento e, por mais que gostemos de especular, ninguém sabe quem seria se tivesse nascido em outro lugar. Ao me reconhecer como brasileiro, aproprio-me daquilo que sempre foi meu.

O filósofo português Fernando Belo, em “A Metamorfose das Ciências”, publicado no Caderno de Filosofias, de Lisboa, diz: “Podia não ser e tinha de ser: é o que nos seduz nas grandes narrativas da ficção como da história, quer ainda da nossa própria história pessoal, com tanto de aleatório, mas o sentimento posterior de que tinha de ser, foi um “destino” (mas nunca uma “pré-destinação”, teológica por excelência).”

Ser brasileiro é o meu destino — não o que poderia ter sido, mas o que foi e é.

Quem está o tempo todo com o Brasil objetivo na ponta da língua adora mostrar-se indignado. Neste estado, compartilha com outros indignados sua… indignação. E daqui não se chega a lugar algum. A indignação serve para motivar uma ação. Quando ela se esgota em si mesma serve apenas para “engrandecer” o indignado no grupo dos outros… indignados. Cachorros correndo atrás de seus próprios rabos.

Citando Luc Ferry, numa entrevista da CPFL Cultura, em 2011: “A indignação é um sentimento detestável, a gente sempre fica indignado em relação aos outros e não a si próprio, com o que a gente faz. Isso não é um sentimento moral autêntico. A verdadeira moral nunca é indignação. Isso é o que Nietzsche chamava de moralismo, a falsa moral. Pascal, que foi um filósofo cristão, tinha uma frase magnífica, ele dizia, ‘a verdadeira moral goza da moral’. A verdadeira moral nunca é indignação, (que) é um sentimento que permite dizer que somos melhor que os outros, mas isso não é verdade, em todo caso é muito raro.”

Chamo esse pessoal indignado, que vive com o Brasil objetivo na ponta da língua, de hipocondríacos políticos.
Assim como é penoso ter um corpo que a qualquer momento pode cair doente, deve ser muito desconfortável viver num lugar em que sempre se acha tudo errado.

Gostaria de fazer uma última ressalva. É preciso não confundir o que foi escrito com o conceito de um “patriotismo” ingênuo e/ou ufanista. Trata-se de aceitar o inevitável, acolhê-lo e participar das mudanças possíveis. Existe ainda a escolha de mudar de país e nunca mais pisar em solo brasileiro. Esta, no entanto, não é a opção da maioria.

Apesar de todas as mazelas, posso ficar em paz com meu destino.