Luiz A G Cancello
Fui fazer um exame médico. O procedimento dura uns 15 minutos. A maca não é macia. Para sair daquele silêncio chato e aliviar o desconforto, puxei conversa com o doutor, um homem de uns 50 anos, bem apessoado, postura ereta, ar confiante. À primeira vista poderia sugerir arrogância, mas o sorriso aberto atenuava essa perspectiva. Comecei brincando com a situação:
– Quanto tempo ainda tenho neste plano?
Ele riu e topou o jogo. Perguntou minha idade, antecipei a contagem:
– Faço 80 anos em novembro.
Muita gente diz que não tenho cara de pré-octagenário. Confiante nessa imagem, vaidoso, espero um elogio, tipo “Não parece”. O médico entrou por aí, indiretamente:
– Seu exame está ótimo, até agora. Pra envelhecer bem temos de ter desafios na vida.
O rumo da conversa foi inesperado. Tenho preconceito com a frase “Sou movido a desafios”, um estereótipo proferido à exaustão pelos assim autodenominados “bem-sucedidos” ou “empreendedores”. A face escancarada do Neoliberalismo. Tentei evitar que ele perguntasse sobre os meus desafios. Resolvi mudar o enfoque:
– A vida tem de ter encantos. Velhos ou novos, precisamos nos encantar com alguma coisa, para que a existência seja interessante.
– A gente tem de ter desafios.
Respondeu assim, seco, como se a minha afirmação fosse um nada. Creio que me ouviu, mas não registrou. Não fazia sentido pra ele. Continuei tentando:
– A gente pode se encantar por muitas coisas. Pode se ligar numa coleção de selos, num instrumento musical, no artesanato, num esporte. Mas, se nada nos tocar, viver fica muito sem graça.
– A gente vai pra frente quando tem desafios. Sem isso não dá.
Em seguida fez alguma observação sobre o exame. Resolvi mudar o eixo da conversa.
– Minha válvula mitral tem um refluxo meio punk.
Esse problema não estava em questão no exame, falei por impulso, para quebrar o assunto anterior. Ele dissertou sobre o coração com autoridade. Falou de átrios, ventrículos, artérias e válvulas. Parecia orgulhoso de seu saber. Perguntou se eu fazia exercícios físicos. Detalhei meu regime de ginástica, recebi uma aprovação com a cabeça.
– Você vai longe.
– É porque eu me encanto com as coisas.
Ignorou a provocação e trocou o argumento:
– É porque você tem boa genética. É sorte. A gente trabalha em cima da herança dos genes. Isso responde pela quase totalidade da saúde.
Outra afirmação peremptória, destruindo minhas convicções sobre alimentação e cuidados com o corpo. Questionei tanta certeza.
– Por tudo que tenho lido, um estilo de vida saudável tem grande influência sobre a longevidade.
– Se não tiver hereditariedade boa, não adianta nada.
A mistura de genética e desafio é explosiva. Quase assustado, mas ainda assim pensando em prolongar o embate, levantei-me da maca. Enquanto ajeitava a roupa, arrisquei:
– Quero mesmo é viver em paz.
Não respondeu com palavras. Olhou-me devagar e balançou a cabeça, como quem diz “Esse aí não tem jeito”.