Grupo de Estudos

Luiz A. G. Cancello

Seis integrantes de uma Sociedade de Psicologia, todos com autênticos interesses culturais, sentaram-se para ouvir o Filósofo. Eram dois homens e quatro mulheres. Três profissionais do sexo feminino eram psicanalistas e o restante — dois homens e uma mulher — psicoterapeutas de outras tendências. Números para todos os gostos: um Filósofo, dois homens, três psicanalistas, quatro mulheres, falta o cinco, talvez por isso Humberto tivesse notado a falta de um certa quintessência, seis psicólogos, sete pessoas. Meia dúzia de atenções à busca de uma revelação. O tema era o Pós-Modernismo. 
Começou a exposição. A certa altura o Filósofo mostrou que o tal Pós-Modernismo era a negação do Princípio da Razão Suficiente, cuja formulação mais acabada deve-se a Leibniz. Os ouvintes balançaram a cabeça em total concordância, parecia que todos ali haviam dormido a noite passada com a tal razão suficiente, tal a familiaridade demonstrada. É verdade que muitas vezes não é preciso razão alguma para se dormir com alguém, ainda por cima suficiente, isto já é um luxo, pensou Humberto, que também fez o tradicional e recatado gesto de concordância, embora a nuca estivesse dura, temendo trair sua completa ignorância. A timidez de sempre mais uma vez o atormentava, mas ele estava certo de não estar sozinho naquela situação constrangedora.

Seguiu-se a aula, aos poucos todos foram tendo uma vaga compreensão do que vinha a ser o conceito. Perceberam que o Pós-Modernismo questiona a necessidade de, para tudo, formular-se um fundamento. A partir daí estavam em terreno mais conhecido, percorrendo termos usados por alguns outros filósofos, frequentadores mais assíduos dos Manuais de Filosofia lidos no curso colegial, e resolveram que o tema já estava razoavelmente dominado. Alguns arriscaram-se até a fazer certas observações óbvias que, faladas de maneira mais ou menos rebuscada, davam a impressão de palpites muito inteligentes. A educação europeia do Filósofo mudou a direção do vento, agora era ele quem balançava polidamente a cabeça, se dor na nuca havia ele não disse, mas seria certamente por outras razões. Enfim, uma clássica reunião de intelectuais, todos absolutamente a par dos temas importantes do mundo atual.

Os participantes do colóquio já haviam ouvido falar em Leibniz, e sabiam agora que, pelo jeito, era um homem de princípios. Mas Humberto quis saber mais sobre a ilustre figura. Pesquisou em alguns livros antigos e chegou a interessantes conclusões. Provavelmente o filósofo (Leibniz, não o outro) não era casado, já que este acontecimento não estava registrado em nenhuma das biografias consultadas. Isto podia até ser deduzido de suas formulações, pois todo marido sabe que, para sua esposa, nenhuma razão é suficiente. Somente um celibatário convicto teria condições de pensar tal desatino e, ainda por cima, publicá-lo. Deve ter sido solteiro e dissoluto, por pura oposição ao pai, que era professor de Moral na Universidade de Leipzig. Mas talvez em 1646, ano de seu nascimento, ainda não houvesse razão suficiente para tal demonstração de rivalidade contra a figura paterna; a psicanálise só foi inventada muito depois.
As biografias dos Manuais consultados por Humberto diziam ainda que, aos 15 anos, Leibniz já havia lido Bacon, Hobbes, Galileu e Descartes. Não constando que entre seus autores prediletos figurassem Hipócrates ou Paracelso, pode-se supor que não tenha brincado de médico com suas primas, perdendo assim uma inestimável e única oportunidade de iniciação nos mistérios do sexo. Em compensação, dedicou-se à matemática, descobrindo mais tarde o cálculo infinitesimal. Mais de dois séculos depois um médico austríaco, o tal que inventou a psicanálise, chamaria esse fenômeno de sublimação. “Esse menino é um número”, costumava dizer sua mãe, que nada entendia do assunto. Mas mãe é assim mesmo. Passariam mais de três séculos até que um francês fizesse dessas simples palavras maternas uma tremenda confusão de significados e significantes. Humberto pensava que, se o tempo andasse para trás, muitas coisas poderiam ser melhor compreendidas.
Aos 24 anos Leibniz foi nomeado conselheiro da Corte Suprema de Mayence, lugar que Humberto não tinha a menor idéia de onde fica, e, ainda segundo seus biógrafos, usufruiu dos favores de tal posição durante muitos anos. A palavra mordomia, inventada pelo insigne estadista Fernando Collor de Mello, ainda não havia feito escola. Leibniz aproveitou a oportunidade para marcar a história da filosofia e da matemática com cada gota de tinta e de suor que despendia, nesse tempo quando não existiam a caneta Bic e o ar condicionado. Talvez por isso a própria gota o tivesse imobilizado, aos 68 anos, dois anos antes de sua morte. Nunca se sabe a misteriosa relação entre as palavras e as coisas. E Foucault, que escreveu um livro chamado justamente “As Palavras e as Coisas”, ainda não havia nascido para explicar tais dificuldades. Humberto convenceu-se, de uma vez por todas, que o tempo deveria, ao menos, ser reversível.

Na reunião seguinte do grupo de estudos resolveu superar a timidez. Encheu-se de coragem, procurou esquecer a dificuldade de falar em público e apresentou o resultado de suas pesquisas aos colegas. Todos fizeram, novamente, o mesmo movimento de cabeça, além do sorriso compreensivo de quem já sabe de tudo, ouvindo a explicação do outro por mera condescendência. Aquilo irritou profundamente o expositor, que, ainda contido, perguntou polidamente se aquelas informações eram de domínio público, pois se o fossem de nada adiantaria continuar sua fala. Tudo o que obteve foi uma leve acentuação do esgar no canto de cada lábio. Desesperado, Humberto gritou um “Está bem, acho que eu sou o único ignorante deste grupo de sábios”, rasgou suas anotações e comeu, um a um, os pedaços de papel picado. O psiquiatra e as psicólogas trocaram olhares que não deixavam dúvidas sobre o diagnóstico do colega. Desde então Humberto se encontra internado num hospital psiquiátrico. Uns dizem que ele quer ser chamado de Leibniz, outros que gasta o tempo lendo Hipócrates e Paracelso. Ainda é homem de poucas palavras, mas agora sem falar coisa com coisa. A informação mais segura, no entanto, vem de uma das psicólogas do grupo. Ela conta que, ao visitá-lo, foi agarrada ao som de um sussurrante e repetitivo “vem cá, priminha, vem cá, priminha”.