Furúnculo

Luiz A. G. Cancello

Espero meu aluno Tomás. Sou orientador de seu Trabalho de Conclusão de Curso em Psicologia Clínica. Não estava mais a fim de pegar esse tipo de tarefa, agora que a aposentadoria se aproxima. Mas as ideias do menino, inteligentes e atrevidas, me cativaram. Marquei com ele no bar da esquina da faculdade, gosto de fazer isso, travar uma primeira discussão informal, para depois entrar nas searas da metodologia e demais etapas acadêmicas. Pedi uma cerveja, para deixar o clima bem relaxado, talvez até demais, segundo alguns meus dos meus colegas professores. Ele chegou, cumprimentou-me e ia começar a falar, mas me adiantei e fui direto ao assunto.
— Quando você me procurou pela primeira vez, no corredor da universidade, veio com a ideia de gravar sessões de terapia em vídeo, o que era razoável. Cliente e terapeuta poderiam rever em casa o que foi dito. Acho até que alguém já fez isso. Ficamos de conversar sobre as possíveis polêmicas, sobre a questão do sigilo. Agora você atropela tudo, envia um e-mail com essa proposta estapafúrdia de uma psicoterapia aberta para o mundo, transmitida via internet, em tempo real. Muito doido. O que vai restar da intimidade, se a moda pega?
— Calma, professor, nem acabei de chegar e já tomo um esporro. Claro que ninguém vai ser obrigado a fazer terapia desse jeito. Mas posso propor isso às pessoas. Aposto que vou ter um monte de clientes à busca de seus minutos de fama. E adoro a idéia de escrachar a intimidade. É punk.
Tomei um gole de cerveja.
— E onde fica a vida interior, ou o que resta dela? Pretende escancarar a psique dos outros? Estou careca de saber das discussões modernas e pós-modernas sobre os limites do público e do privado, do individual e do coletivo. Já discutimos isso em classe. Mas filmar sessões de terapia para a web, em tempo real, do consultório para quem quiser ver, me parece demais.
Ele projetou os lábios para frente, como quem está desagradado, crítico, sinalizando desprezo:
— A geração de vocês dava um valor exagerado ao tal mundo interno. Coisas do Freud e do Jung, aqueles caras que ficavam trancados no quarto escrevendo sobre as profundidades, à luz de velas. Eram obcecados também pela auto-análise. Lembro dos professores falando nisso com admiração. Muitos alunos não entendiam. Eu entendia, sei lá, mas achava uma perda de tempo. Isso não existe mais. Somos voltados para fora, para o prático, a fama, o sucesso.
— Sabe o que é um furúnculo?
— Sei, meu pai já teve, faz tempo. O que tem a ver uma coisa com a outra?
A metáfora me surgiu do nada, como surgem os furúnculos. Fiz uma pausa na conversa. Não tinha certeza de que a sequência seria adequada, mas foi o que veio à cabeça. Decidi continuar.
— Lembro-me de que antigamente existiam furúnculos. Não escuto falar eles, hoje. Os antibióticos modernos fazem a infecção ser reabsorvida.
— E daí? Perguntou Tomás, com a testa enrugada. Confesso que a atitude espantada do menino me deu um certo prazer.
— Espere. Vou continuar e você vai entender. Todos os meus amigos tiveram furunculose. Havia uma entidade misteriosa, o carnegão. Ficava no fundo do buraco da pele. O objetivo de espremer o furúnculo era retirar o carnegão. Algumas vezes ele não aparecia, coisa muito frustrante. Chegar ao carnegão, ao âmago, era a glória. A gente se sentia aliviado. Purificado. Por isso, entre outras coisas, as pessoas usam a expressão “no fundo” para referir-se a um lugar onde reside o pior de nós. Uma vez “posta para fora”, essa coisa ruim resolve todos os problemas.
— Ainda não estou entendendo. Esse negócio está nojento.
— É simples. Você não ouviu dizer, na faculdade, que era preciso “por para fora” as coisas ruins?
— Claro, todo mundo fala isso. Até a minha avó.
— Pois é. E todo mundo acha que “no fundo” de nós reside algo terrível, que pode e deve ser “posto para fora” para a gente se conhecer melhor. É um conceito cultural, uma crença, um modelo de ser humano. É preciso ir até o âmago. Sua avó galega sabia das coisas.
— Era analfabeta, cravou Tomás, achando que iria me embaraçar.
— Isso é o de menos.
O jovem quase-psicólogo agora estava com a testa ainda mais enrugada. Prestava muita atenção, balançava a cabeça para cima e para baixo num movimento curto, o cotovelo esquerdo apoiado na mesa, a mão beliscando de leve o lábio. Algo de familiar havia nas minhas palavras, e estava prestes a ser visto sob outra luz. Sempre achei esses momentos fascinantes, o poder de modificar conceitos solidificados na mente dos alunos. O prazer resvalava no mais descarado narcisismo, mas me pergunto se haveria aprendizado sem essa falha de caráter dos professores. A discussão daria material para uma tese. Resolvi prolongar o momento, estendendo a explanação com dados psicológicos e culturais, até o limite da insensatez.
— Os furúnculos apareciam nas dobras, na bunda, no sovaco, na virilha. Escondidos. Veja o simbolismo. Aposto que no Youtube deve existir algum vídeo que mostre um furúnculo sendo espremido. É o máximo da iconoclastia.
— Vou procurar assim que chegar em casa e ligar o computador.
— E procure no Google os modos de curar os furúnculos. É possível que alguém de meia idade tenha escrito lá toda uma cultura do antraz, como alguns também chamavam, embora não seja exatamente a mesma coisa. Tinha a pomada Ictiol, que puxava o pus para fora. A pomada Furacin. Miolo de pão com leite quente, o calor úmido fazia a pele se romper e abria caminho até o carnegão. Tomate com sal. Banho de permaganato, para a coisa ruim não se espalhar pelo corpo. A gente tomava levedo de cerveja para limpar o sangue. Purificação interior.
— Meu, você está exaltado. Nunca vi o senhor assim.
— E tinha a íngua! Creio que hoje se chama “inflamação dos gânglios”. Veja o contraste. O nome popular é sugestivo, tem uma pronúncia misteriosa, o acento no “i” seguido da sílaba “gua”. As crianças precisavam aprender a pronúncia, um desafio para nós. Hoje nem sei se dá tempo de formar a tal íngua, o antibiótico esconde tudo, a cratera na pele, os caroços, o nojento. Aquilo fazia parte da vida. Hoje a existência tornou-se insípida.
A cada pausa eu tomava mais uns goles de cerveja. Precisava parar antes de perder o controle do que estava falando e fazendo. Ou não. O garoto tentou retrucar:
— Que dizer que perdemos muita coisa, com o progresso da medicina. Essa é boa. Que viagem!
—É possível. Tente entender. Esse é o homem psicológico, que tem vida interior, que quer se conhecer e purificar. O sujeito do furúnculo. Era uma experiência comum da adolescência. O cara chamava a mãe, às vezes meio envergonhado por causa da localização do calombo, e pedia ajuda. Era ela, a mãe, quem preparava aquelas coisas de miolo de pão, e tal. Tinha um contato interessante com as intimidades do filho, pois precisava mexer em partes que nem mesmo olharia, em outras circunstâncias. Édipo às avessas. Talvez revivesse cenas infantis. Não sei, nunca foi feita uma psicologia do furúnculo, que eu saiba.
— Bem, acho que estou pegando o espírito da coisa, mas você, desculpe a insistência, o senhor está meio estranho.
Era assim mesmo que eu me sentia. Estranho, mas lúcido, a lucidez dos sádicos e dos loucos. Olhei o rapaz nos olhos e perguntei, com a entonação de um policial fazendo interrogatório:
— Você já teve furúnculo?
— Nunca tive. Já disse que meu pai teve, eu não. Se tivesse tomava antibiótico.
A estocada não pegou de jeito, não chegou ao carnegão. Talvez nada pegasse fundo nesses moleques. Esses caras têm uma outra cabeça. Talvez nem mesmo houvesse onde pegar, aquele âmago imaginado pela minha geração. Dane-se a privacidade, a preservação do fundo, o que fosse. Resignei-me. Bati a mão na mesa, com a força necessária para declarar encerrada a conversa.
— Então faz logo essa porra de terapia via web. Vamos ver o que acontece. E não esquece de me mandar a data e o link.
Tomás levantou da cadeira e se despediu, deu uns tapas afetuosos nas minhas costas, com uma cara trocista. Fiquei olhando o menino de afastar, apenas observando, o pensamento vazio. Paguei a conta e fui para casa.
Passei os dias seguintes morrendo de curiosidade, como o garoto que esperava a próxima revistinha do Carlos Zéfiro.