Apreciação de Luiz A G Cancello
Num grupo do facebook uma amiga escreveu sobre o livro Flor de Neve e o Leque Secreto, de Lisa See. Fiquei curioso. Gosto de ler histórias que se passam em culturas e tempos diferentes. Comprei e li. Agora fica a tarefa de comentá-lo, e começo pelo posfácio.
Conforme a leitura vai avançando, nota-se que a autora, uma americana descendente de chineses, tem um grande conhecimento sobre a cultura da China. No final de livro ela conta que se deslocou para o país e andou pela província onde se passa a trama, colhendo histórias dos habitantes mais velhos. Fez também muitas pesquisas sobre o tema que desenvolve, o nu shu, caracteres que eram grafados nos leques que as mulheres compartilhavam. É a única escrita exclusiva de mulheres de que se tem notícia. Numa sociedade em que a vida feminina era cheia de limitações, havia então um modo de elas se comunicarem e burlarem, em parte, as grandes restrições a que eram submetidas pelos costumes tradicionais.
O destino das mulheres era tornarem-se atraentes para os homens, principalmente por seus pés pequenos, e gerarem filhos homens. Para cumprir seu papel passavam incialmente por um processo doloroso de enfaixamento e de exercícios, em geral dos 6 aos 8 anos de idade. A casamenteira da região supervisionava o processo.
Ela chegava no aposento das mulheres, empoleirava-se num banquinho e pedia para ver os pés de todas as meninas da família Yi. (…). As coisas que madame Gao dizia! “A fenda é tão funda quanto as dobras internas dessa menina. Ela vai fazer do marido um homem feliz.” Ou então: “O modo como o calcanhar dela se curva para baixo como um saco com a parte da frente do pé apontada para fora vai fazer o marido pensar no próprio membro. Esse homem sortudo vai passar o dia inteiro pensando em coisas de cama.” (p. 55-56)
A história é narrada por Lírio, uma mulher que atinge a idade de 80 anos, fato raríssimo na época. Ela se permite contar o que viveu, mas só depois que os outros personagens estivessem mortos. Quando recorda que teve um filho homem, revela:
Os filhos são a base da personalidade de uma mulher. Eles dão à mulher sua identidade, bem como dignidade, proteção e valor econômico. Eles criam o elo entre o marido da mãe e seus antepassados. Essa é a única realização que um homem não consegue sem a ajuda da esposa. Só ela pode garantir a perpetuação da linhagem familiar, que, por sua vez, é o principal dever de todo filho. E assim que ele cumpre o seu dever de filho, enquanto que os filhos homens são a maior glória de uma mulher. Eu tinha feito isso, e estava maravilhada. (p. 200)
Os dois processos – conseguir pés pequenos e ter filhos homens – permeiam a amizade de Lírio e de Flor da Neve, eixo principal do livro. Algumas jovens, consideradas especiais, uniam-se numa aliança chamada laotong. Essa cumplicidade era sagrada, devia uni-las por toda a vida. Foi esse o destino das duas moças. O processo de escolha das companheiras era complexo. As casamenteiras e outras mulheres das aldeias, bem como as famílias, tomavam parte na seleção.
O estreito contato entre Lírio e Flor de Neve é descrito com todos os tons da delicadeza, da intensidade emocional e das decepções. A autora mostra os sentimentos das meninas nas sutilezas dos fatos cotidianos:
Chegou a hora de lavarmos o rosto para dormir. Lembrei-me do incômodo que senti durante a primeira visita de Flor da Neve. Fiz ela ir primeiro, mas ela se recusou, Se eu fosse primeiro, a sinal para água não estaria limpa para ela. Mas quando Flor da Neve disse: Vamos lavar o rosto juntas -, eu soube que todo o meu trabalho e a minha força de vontade de fazendeira tinham dado frutos. Juntas, nos inclinamos sobre a bacia e jogamos água em nossos rostos. Ela me cutucou com o cotovelo. Olhei para a água e vi nossos dois rostos refletidos. Escorria água pelo rosto dela e pelo meu. Ela riu e espirrou água em cima de mim. Naquele momento de compartilhamento da água, eu soube que minha laotong também me amava. (p. 88)
Lisa See escreve usando as metáforas da natureza e dos rituais da província de Tongkou, terra natal de Lírio. As laotong dizem-se unidas como um par de marrecos, encontram-se no Festival Espantar os Pássaros, viajam ao Templo de Gupo, seguem os ensinamentos de Confúcio expresso em O clássico das mulheres. A escrita dos leques é uma forma de subverter o mundo ordenado, de expressar aquilo próprio das mulheres, contornando o patriarcado reinante.
Como acontece nas histórias bem contadas, em poucas páginas o leitor é capturado, sai de seu tempo e espaço e está imerso no interior de uma China do Século XIX, familiarizado com o local e seus habitantes. Esse envolvimento é o grande mérito do livro. Até onde sei, a autora não faz o que alguns gostam de chamar a “Grande Literatura”, com preciosismos de linguagem e estilo. Como foi dito, é uma boa contadora de histórias, o que é extremamente gratificante para quem está aberto a conhecer outros mundos.