Notas de Luiz A G Cancello
Interesso-me pela História de Portugal, matéria que visito de quando em quando. Lendo sobre a queda do reinado dos visigodos e início da dominação árabe na Península Ibérica, deparei-me com uma menção a Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano. Do autor, nome de uma rua perto da minha casa, eu conhecia muito pouco. Sabia que era escritor, e só, lembrança das aulas de Literatura do colegial. Resolvi enfrentar o livro, escrito em 1844.
É curioso o processo de leitura, hoje, de uma obra clássica do romantismo português. O auxílio do Google é imprescindível para os locais geográficos mencionados pelo autor, que os nomeia com os toponímicos do século VIII. Consultei palavras há muito não usadas (bulcão, aripense, alimária), e nomes das patentes, unidades militares e cargos de nobreza dos povos envolvidos (gardingo, quingentário, tiufadia), vestes e armamentos de godos e dos mouros. Penso que não conseguiria acabar a leitura se não dispusesse do recurso eletrônico.
O romance daria um filme que combinaria drama e ação.
A história e amor entre Eurico e Hermengarda é permeada de conflitos morais e religiosos, cenas de ação dignas de um thriller, reconstituições históricas de locais e costumes. Em seu retiro religioso, que ocupa a primeira parte da obra, o protagonista escreve hinos religiosos, descobrindo em si um poeta. A citação dá uma ideia do estilo do texto:
Sabeis o que é esse despertar de poeta? É o ter entrado na existência com um coração que transborda de amor sincero e puro por tudo quanto o rodeia, e ajuntaram-se os homens e lançarem-lhe dentro do seu vaso de inocência lodo, fel e peçonha e, depois, rirem-se dele: É o ter dado às palavras — virtude, amor pátrio e glória — uma significação profunda e, depois de haver buscado por anos a realidade delas neste mundo, só encontrar aí hipocrisia, egoísmo e infâmia: É o perceber à custa de amarguras que o existir é padecer, o pensar descrer, o experimentar desenganar-se, e a esperança nas coisas da terra uma cruel mentira de nossos desejos, um fumo tênue que ondeia em horizonte aquém do qual está assentada a sepultura. Este é o acordar do poeta.
Mais tarde Eurico, que abandonara as façanhas militares e as companhias femininas para exilar-se no mosteiro, voltará à guerra para defender a península invadida pelos árabes. Mas seu retorno estará sempre motivado pela paixão por Hermengarda, a quem encontrará em dado momento da narrativa, com um desfecho surpreendente.
O protagonista do romance é descrito como um autêntico super-herói. Vestido uma armadura característica, é uma versão clássica do Cavaleiro Negro, temido pelos adversários e cultuado pelos parceiros de luta. Entre os votos religiosos e os compromissos bélicos com a pátria e Cruz, como ele mesmo nomeia, o drama interno de Eurico é exposto na linguagem rica (e difícil!) de Alexandre Herculano, que além de escritor era um historiador profícuo.
Deparando-me com o livro quase por acaso, em incursões esparsas pela História de Portugal, fui surpreendido por uma leitura cativante, por um personagem riquíssimo e uma aventura fascinante. Como se não bastasse, a narrativa nos presenteia com o panorama de uma importante fase da construção do país que nos legou a língua e grande parte da cultura.