Livro: Escute as feras
Autora: Natassja Martin
Editora: Editora 34, 2002
A antropóloga francesa Natassja Martin viaja para a Rússia para estudar os even, povo das florestas siberianas, no extremo leste do país. Em suas andanças pela mata se depara com um urso, que a ataca. Apesar de feria, ela consegue sobreviver, pois, no meio da luta, dá uma estocada na fera com um instrumento de alpinismo que leva consigo. O urso foge e ela é resgatada pelos habitantes do local e depois encaminhada para uma enfermaria. Isso sabemos já nas primeiras páginas.
Em seguida a autora conta os passos de sua recuperação, entremeados com reflexões sobre o acontecimento. O leitor vai notando que não houve um simples acaso. Depois do embate, da troca de sangues, algo do urso ficou nela, e algo dela marcou o urso.
Com um texto forte e preciso, Natassja constrói um todo fascinante, onde cabem uma cientista ferida, um urso e pessoas de diferentes origens. A descrição da família dos even que a acolheu desde o início de suas pesquisas vai se encontrar com o modo como apresenta sua família, os médicos e enfermeiros, sua psicóloga e a fera. Todos são diferentes e tão iguais, como se fizessem parte de um espírito universal, como todos (e não apenas os predadores) obedecessem a uma só lei:
“Não é um pensamento que eu gostaria de verbalizar: prefiro escrevê-lo: hoje, sentada na beira do rio, na neve molhada, escrevo que existe uma lei implícita, silenciosa. uma lei própria dos predadores que se procuram e se evitam nas profundezas das matas ou nas dorsais da terra. A lei é a seguinte: quando e se eles se encontram, seus territórios implodem, só seus mundos se reviram, seus encaminhamentos usuais se alteram e seus vínculos se tornam indefectíveis. existe uma suspensão do movimento uma retenção uma parada um estupor que se apossa das 2 feras pegas no encontro arcaico – aquele que não se planeja, aquele que não se evita, aquele do qual não se foge.”
Natassja faz uma análise de seu psiquismo, não um perscrutar apenas interno, mas algo na linha da antropologia, do encontro de diversos mundos – os habitantes da floresta, os humanos e as feras, sua família francesa, os profissionais de saúde rudes das estepes siberianas e os sofisticados franceses. Ninguém sai perdendo ou ganhando, não é este seu objetivo. Em meio à dor de sua recuperação das feridas, emerge a tentativa de compreensão de um todo anímico, único, onde seu sofrimento adquire sentido, como se não pudesse ser evitado, como se já estivesse escrito para que emergisse sua rica compreensão de mundo.
O livro é uma corajosa (e talvez inevitável) exposição de si mesmo, uma autoanálise radical e selvagem, uma leitura forte e fascinante.