luiz a g cancello
de novo espero o sol afundar no horizonte
que se esconde atrás do prédio em frente.
espero a noite mais por cacoete,
aqui em casa está sempre meio escuro.
procuro escrever em cantos protegidos,
uma perspectiva a partir do lusco-fusco,
de onde eu possa vigiar o que se passa
em cada enredo possível.
espero mais que o manto negro.
certos acontecimentos decisivos
não têm a menor chance de ocorrer de dia.
mas é preciso alguma luz, mesmo que tênue,
e uma porta aberta, ou uma janela
por onde o eflúvio se insinue,
atraído pela trama ainda em rascunho.
por isso deixo aceso o abajur.
sinto que o ar se movimenta,
algo estranho à meteorologia.
tem densidade e peso,
diria até que é um pouco pegajoso.
tem parentesco com ameba ou gelatina.
é possível que invada o apartamento
e me sufoque no seu ser viscoso,
qual borracha apagando a minha escrita.
não sei de onde tirei a ideia
de que posso escapar do fluxo.
talvez a tentativa de fixar o inefável.
uma crença absurda de que, ao escrever,
consiga diluir na tinta a seiva do destino.
começo a rabiscar uma grande obra,
minha letra se esparrama além da folha.
posso desligar o abajur, mas não me cabe.