Escravo

Luiz A.G. Cancello

Ela era muito feia. Não saberia, agora que tudo já aconteceu, precisar os detalhes anatômicos que me levavam a essa conclusão. Estava sozinha, na mesa lateral. Lembro-me apenas de olhá-la novamente, tal a atenção que sua feiura me despertara. Sorriu. Fiquei horrorizado com a possibilidade de estar sugerindo uma paquera, mas o sorriso  – apesar dos dentes tortos, disto lembro bem – tinha algo de interessante. Fiz um esforço e voltei o rosto para o Toni, que bebia cerveja comigo naquele bar. Quase comentei a aparência da mulher, mas, por pena ou respeito (pensava eu, àquela altura) me contive. Não encontrei mais o fio da conversa, nem mesmo quando chegou o Deco, com as novidades sobre a greve do porto. O rosto grotesco me chamava, mas o dito de para-choque de caminhão repetia-se na mente: “Se me virem agarrado com mulher feia, separa que é briga.” Tentei fazer considerações sobre a gratuidade da beleza, pois ninguém decide a cara que vai ter, e de repente aí está a feição que não se pediu, a decidir tantas coisas na vida de quem a carrega. Tudo em vão. A face estranha me atraía. Pela segunda vez voltei os olhos na direção da mesa lateral. A mulher parecia esperar essa atitude; sorria agora como quem sabe do inevitável. Eu também soube, naquele momento, que mais cedo ou mais tarde iria falar com ela.
Esperei meus companheiros irem embora, tarefa difícil, pois os dois bebem muito e dormem tarde. Sempre saem do bar depois de mim e ainda ficam perambulando pelo Gonzaga. Estranharam que eu ficasse ali sozinho, dobrando as três da manhã, mas pedi que não perguntassem nada. Já estávamos numa idade em que se pode respeitar as esquisitices dos amigos.
Foi ela que tomou a iniciativa de sentar à minha mesa. Chamava-se Júlia. Tinha voz macia e gestos delicados, como quem dança ballet. A conversa fluiu de acordo com o costume: quem é você, o que faz, o português põe essas músicas bregas, já viu o filme do Iporanga? Eu evitava olhar para o rosto da minha nova amiga, com medo de ali me fixar, tal o espanto que a feiura evocava. A certa altura, por descuido, olhei-a diretamente nos olhos. Fui sugado por duas esferas negras, como quem entra no vórtice de um rodamoinho ou numa fenda do tempo. Contive-me, a custo saí daquele estado. Vi em sua face, novamente, o sorriso calmo de quem sabe, desde há muito, o rumo dos acontecimentos.
Às quatro e meia o bar foi fechado. Caminhamos até a praia. Eu achava que iríamos ver o dia nascer. Mas, antes de clarear, ela se despediu. Disse apenas: “Amanhã, no mesmo lugar, ok?” Não respondi, mas sabia que esse novo encontro era inevitável.

Fui para casa cismado. Como é possível tamanha feiura ser irresistível? Ali havia algo de diabólico. Mas quem conta estórias do diabo são meus amigos criados no interior, o Zeca e o Toni, esse que estivera comigo até tarde. Acho que, na cidade, o demo fica meio desajeitado. Talvez mande emissárias, e uma delas veio dar comigo. Uma bruxa, era isso, uma bruxa. Eu perguntaria onde ela estaciona a vassoura, receberia um provável tapa na cara e estaria livre. Ou diria que tenho dois sobrinhos, Joãozinho e Maria, para ver a reação da moça. Se os olhos brilhassem, pronto: estaria feito o diagnóstico. Bobagens. Sabia que nada disso iria acontecer. Sou muito educado e respeitador para tais ironias. Vou achar uma desculpa delicada e sair dessa.

Na outra noite eu estava lá. Ela chegou em seguida e veio direto para a minha mesa. Ainda bem que eu havia convencido o Toni e o Deco a irem ver o filme do Indaiá, que era muito bom, só não iria com eles por já tê-lo assistido no ano passado, grossa mentira. Procurei não olhar para a face da minha companheira, mas era impossível ter tal controle. Curioso! Cada vez que eu encontrava seus olhos, tinha uma sensação de leveza que não deixava de ser agradável. A boca evocava uma estranha sensualidade, o queixo se contraía com graça. Era como se cada parte do rosto fosse bela, embora o todo compusesse uma figura assustadora. Mesmo os dentes tortos, isolados do conjunto, tinham seu charme.
Eu estava cada vez mais perturbado com o inusitado daqueles encontros, quando Júlia notou meu cinto. Era feito de um couro curtido à moda antiga, largo, fivela simples mas de boa qualidade. Perguntou-me se era fácil retirar a fivela. Respondi que sim; fixava-se no couro por um dispositivo de pressão. Ela pareceu adorar o detalhe. Mostrou-me o seu cinto, também largo e tradicional, com uma fivela do mesmo tipo, porém maior. Ficou muito excitada com essa troca de exibições tão peculiar. Abandonou seu ar contido, pegou a bolsa e apressou-se em pedir a conta e pagá-la, apesar de meus protestos. Disse que estava acalorada. Propôs que caminhássemos um pouco pela praia, para os lados de São Vicente, onde morava. Topei, ainda mais intrigado, ansioso para saber onde iria dar tudo aquilo.
O céu estava carregado, em breve cairia uma tempestade. Sugeri tomarmos um táxi, eu a deixaria na porta de casa. “Não, gosto desse tempo, tenho afinidade com raios e trovões”, respondeu-me. “Tudo bem, também me amarro numa tormenta, então vamos”, emendei, para não perder o jeito.
E fomos. As nuvens desabaram quando estávamos na altura do Canal 2. Continuamos andando na chuva, estava mesmo muito gostoso. Ela ria, um riso solto, receptivo, quase fazia esquecer sua feiura. O Toni e o Deco passaram de carro, conversando. Provavelmente fariam a volta logo adiante, certamente estavam falando sobre política, assunto predileto deles. Sugeri pedirmos uma carona, mas, com um simples toque no meu antebraço, Júlia fez com que eu desistisse da ideia. “Deixe-os”, disse. Foi esta a primeira vez que me tocou; a mão era macia, as unhas compridas encostaram na pele, provocando um arrepio forte, misto de medo e prazer. Olhei para ela e vi novamente o ar de quem sabe das coisas. O pavor subia na mesma intensidade do desejo, e, nem sei como, puxei-a para baixo da ponte do canal, ao lado da comporta. Na outra margem alguns mendigos bêbados ficaram olhando a cena, mas aparentemente logo se desinteressaram. Encostei-a na parede, tentei tirar-lhe roupa. Ela se desvencilhou habilmente. “Não tenha tanta pressa”, disse. “Eu gosto de umas coisas diferentes. Você faz pra mim?” Não é preciso dizer que àquela altura eu toparia tudo. Júlia tirou o meu cinto e o dela e amarrou-me os pulsos nas estruturas de ferro do canal, com uma técnica espantosa. Com a correia da bolsa fez o mesmo com meus tornozelos. Imobilizado, sentia-me em expectativa intensa, numa excitação quase insuportável. Ela abaixou minha calça, lambeu meu sexo e chamou: “Luc!”. Um dos mendigos da outra margem atravessou o canal, que a tempestade já enchia, com água pela cintura. A correnteza, embora forte, parecia não ter força para arrastá-lo. Ele chegou até nós. Tinha os pés elameados, era sujo e cheirava mal, apesar do banho forçado. Abraçou minha companheira, arrancou-lhe o vestido e deitou-a junto aos meus pés. Sem se desfazer dos próprios e imundos andrajos, pôs o membro para fora da calça e cobriu a mulher ali mesmo. Na posição em que estava ela me olhava fixamente. Ele às vezes parava os movimentos, estendia um dos braços e golpeava-me os genitais, voltando a fornicar em seguida. Eu não tirava os olhos do casal; a repulsa e a dor foram dando lugar à fascinação, a um prazer enorme, nunca antes sentido, até chegar o orgasmo dos dois. Pouco faltava para que eu também atingisse ao clímax, talvez apenas uma pancada a mais, mas eles se levantaram e, como num ritual, retiraram as fivelas dos cintos que me prendiam, penduraram aquilo no meu pênis, cuspiram-me no rosto e desapareceram.
Fiquei ali amarrado, enquanto a água subia, desejando ao menos masturbar-me para aliviar a tensão, mas estava imobilizado, as águas na altura do peito, eu queria morrer penetrando Júlia, eu chamava “Júlia, Júlia”, era tudo tão intenso, tão forte, as águas já atingindo o pescoço, quem seria Luc, que me castigou com tanta maestria, a água do canal entra na boca, é doce morrer no mar.

Fui resgatado na última hora, graças ao Toni e ao Deco, que tinham me visto entrar debaixo da ponte com a aquela mulher tão feia e estavam estranhando a demora. Ficaram rodando pelas redondezas, para fazer uma enorme gozação quando eu surgisse nas bordas do canal. Quando suspeitaram de algum acidente resolveram chamar os bombeiros. Tentaram conversar comigo, mas eu estava em péssimo estado. Mandaram-me direto para o hospital. 
Saí da internação três dias depois, com a consciência ainda nebulosa. Fui direto ao bar. Lá estavam o Toni e o Deco, como sempre. Quando iniciaram o inevitável questionário, lembrei a eles que já temos idade para não sermos indagados a respeito das nossas esquisitices.
Conversamos sobre assuntos variados, mas eu estava muito intrigado e inquieto. Assim que apareceu a oportunidade, levantei e perguntei disfarçadamente ao Toninho, o garçom, se conhecia a Júlia. “É aquela?”, disse, apontando para uma moça sentada no balcão. Não era, mas a figura me atraiu. Os olhos eram tristes, sem vida. O nariz adunco, a boca com lábios muito grossos, a pele sem brilho, o couro do cinto meio gasto, a fivela de um niquelado esmaecido. Mas o conjunto agradava, era de uma beleza surpreendente. Aproximei-me. Ela sorriu e ofereceu um gole de campari. O gesto levou-me ao limiar da plenitude. Havia no sorriso da mulher uma certeza resignada, uma sabedoria de vida, o ar de quem conhece o próprio destino.
Naquele momento eu sabia de tudo o que iria acontecer em seguida.

Este conto está na página 91 do livro “Dia-a-dia: fragmentos”.