Luiz A G Cancello
— Você está jogando o fio dental usado na privada?
Eu tinha acabado de acordar da minha sesta da tarde. Ainda meio fora do prumo, contrariado com o som abrupto interrompendo meu lento processo de despertar, percebi que não tinha dado a descarga. Nada muito grave, só havia o fio boiando na água. Reuni forças e perguntei qual era o problema.
— O fio dental deve ser descartado no lixo comum.
Aí estava uma informação nova. Será que eu me lembraria de tal coisa daqui a uns 15 minutos, quando estivesse de fato acordado? Resolvi ficar em silencio e deixar o assunto morrer. Em vão.
— Você ouviu?
Sim, ouvi, só necessitava de um tempo para assimilar a informação. Respondi com um ruído, tipo “arrã”, mas a admoestação ficou rolando na minha cabeça. Teria eu me comportado de modo abominável, colocando o planeta em risco? Qual seria o tamanho exato da minha falta? O ato de jogar um pedaço de fio dental na latrina, em si mesmo, é um dado praticamente desprezível no contexto da poluição mundial. Por que me sentia incomodado? Provavelmente pelo aspecto moral. Ou pelo famoso efeito borboleta, quando um bater de asas do inseto aqui no Brasil, por um encadeamento de efeitos físicos, pode provocar uma tempestade na Tailândia. Mas agora a tormenta estava aqui, nesta modorrenta tarde de sábado, quando cometi a imprudência de jogar o fio dental na rede de esgoto.
— Olha o seu celular.
O celular?! Fiquei atônito, o que tinha o celular a ver com aquilo, seria uma notificação da Polícia Ambiental no meu WhatsApp? Refeito da surpresa, iluminei a tela e, de fato, havia uma mensagem. Era um link para um artigo onde se ensinava a descartar corretamente os itens usado no banheiro. Sim, a mesma voz que me chamava a atenção enviava um texto, a confirmar cientificamente as recomendações dadas. Confesso que li todo o arrazoado do autor, era de fato bem fundamentado e interessante. Ao me ver envolvido com a leitura, comentou, num tom entre o delicado e o firme:
— A gente tem de fazer a nossa parte.
Não tenho dúvidas de que devemos fazer a nossa parte, pensei, mas não disse. Fico espantado com as pessoas que acreditam numa “corrente do bem”. Não sei se era o caso, ali. Mas os adeptos de tal corrente acreditam numa propagação das boas ações, como se uma grande transformação acontecesse com a simples soma das boas vontades de indivíduos bem-intencionados, talvez acreditando que as atitudes desses abnegados servissem de exemplo a todos, num espraiamento do Bem. Sempre tive a convicção de que as coisas não se passam assim, as mudanças importantes são movimentos de massa, políticos por excelência, representativos dos anseios de parcelas significativas da sociedade, costurado por lideranças hábeis. Ecos de 1968? De repente achei que estava levando o assunto para outra esfera. Caberiam essas tantas considerações ali, naquele pequeno incidente doméstico?
— Você não vai falar nada?
Respondi que não tinha nada para falar, o que era verdade e mentira, mas achei que não era o caso fazer um discurso. Iria complicar a situação. Dali por diante, se por acaso esquecesse por um momento as recomendações ecológicas e jogasse um pedaço de fio dental na privada, talvez desse a descarga logo em seguida, para evitar o flagrante. Senti vergonha desse pensamento transgressor, prometi a mim mesmo ficar atento ao cuidar dos dentes, evitando o gesto automático e imprudente de jogar o material usado no vaso. De repente ouvi, em tom conciliatório:
— Bem, vida que segue. O que vamos fazer hoje à noite?
“Vamos a uma reunião do Partido Verde”, respondi, não sei de onde saiu tanta ironia, não costumo ser assim, mas era uma raiva contida, um revide para a perturbação da sagrada sesta do sábado, vontade de dar o troco. A vingança envenena a alma, bem sei, mas estava feito.
— Não tem graça nenhuma.
Aproximei-me para pedir desculpas, demos as mãos e aos poucos nos pusemos a rir, rimos muito, de tirar o fôlego.