Luiz A. G. Cancello
— Pessoal, o que vamos fazer é difícil, necessita de muito treino. O artista precisa de incentivo, peço sua atenção e seu aplauso.
Era novembro, noite de calor, mesas na calçada. Os fregueses do bar não demonstravam interesse, continuavam suas conversas. O (em outras épocas) glorioso Santos Futebol Clube havia jogado à tarde, ganhara de um time da capital, o assunto predominava. Ele insistiu:
— Gente, nós éramos mendigos, vivíamos na rua. Hoje somos artistas. Peço a atenção de todos para o nosso número.
Duas ou três meninas começaram a olhar, curiosas, para desagrado de seus acompanhantes. Talvez não estivessem interessadas em futebol. Eu e Clara ainda não sabíamos do que se tratava. Era a primeira vez que os víamos. Ela se lembrou vagamente de uma notícia de jornal, onde lera a respeito de uma escola de circo para meninos de rua. “Coisas do pessoal de esquerda que está na prefeitura. Acho interessante”, comentou. Eu não costumava ler jornal. Aceitei que ela pensasse dessa maneira, afinal o pai era comunista, sempre sonhou com a revolução. Um dos senhores de meia-idade que se reuniam numa das mesas próximas, freguês mais assíduo do Zero Grau, disse com enfado: “Olha eles aí, de novo”. “Deviam mandar esses caras trabalhar no campo”, resmungou outro.
Eram dois rapazes morenos. O mais falante era baixo e troncudo, musculoso, de camiseta regata. Seu companheiro, longilíneo, ficava em segundo plano, sério, preparado para o começo do espetáculo.
Pegaram as garrafas de madeira. O porta-voz da dupla começou a jogá-las para o ar, alternadamente, fazendo-as descrever diversos círculos antes da descida. Tempo e altura precisos, movimento geométrico repetido, pêndulo de hipnotizador. O gargalo caía sempre voltado para a palma da mão do malabarista, que coisa incompreensível. Começaram as variações: ora arremessava por baixo da perna, ora aparava com os braços nas costas. Às vezes precisava esticar-se para aparar uma garrafa desgarrada. “Parece um bailarino”, comentou Clara. Era de impressionar o deslocamento do corpo, os pés fincando-se na calçada, formando a base onde pousaria o projétil que em seguida voltaria aos céus. Meu olhar tentava segui-lo. Algumas vezes era tão rápido que o perdia; mas havia momentos de viagem lenta, odisseia no espaço, osso transformando-se em astronave, lembrança de filme antigo visto na televisão. Senti uma certa embriaguez nessa alternância das velocidades.
As mãos dos fregueses faziam mágica diversa, o chope gelado era alçado aos lábios sem que os olhos se voltassem para a mesa. Há proezas que só se fazem quando a atenção está em outro canto.
Este não era o caso do segundo membro da dupla, agora em cena. Jogava a garrafa para o alto e, enquanto ela descrevia um arco e descia, dava um salto mortal para a frente, pegando-a no exato momento em que o corpo voltava à verticalidade. Alguns aplausos, tímidos. O mais falante sempre no incentivo:
— Pessoal, a gente precisa de palmas. O artista necessita da manifestação do público. Vamos lá!
E batia palmas ele mesmo, para dar o exemplo.
O calor não era tão intenso que justificasse mudanças bruscas no clima. Mas um vento característico começou a afetar peles e narizes mais sensíveis. Sempre detestei esse ar que chega abafado e quente; sinto-me indisposto, agredido pelas lufadas repentinas. Clara costumava dizer que bebia o noroeste junto com chope. Adorava essa força da natureza, que achava revigorante. Instintivamente, olhamos os dois na direção da praia, de onde parecia vir o vento. Mas logo nossos olhos voltaram a pregar-se nos malabaristas.
Apresentavam-se, agora, em dupla. Primeiro frente a frente, um jogando para o outro. Quatro (ou seis?) objetos moviam-se com precisão entre os rapazes. Depois, sem contato visual, costas com costas, jogando as garrafas para cima, sincronizados por um som emitido pelo falador, algo como “Rop, rop”.
Os garçons moviam-se entre as mesas como se nada estivesse acontecendo, já haviam visto aquele espetáculo outras vezes. Talvez não os impressionasse, equilibristas de copos e bandejas; talvez devessem festejar seus confrades de picadeiro. Mas o show não os tirava da rotina implacável: “Vai mais um chope?” Ninguém aplaude um garçom.
O vento, em rajadas de ritmo impreciso, fazia com que as garrafas alterassem sua órbita. Pouco a pouco, os artistas iam chegando mais perto das cadeiras do bar, para compensar os desvios de trajetória. Há controvérsias; não se sabe ao certo se calor estimula o olfato, se os líquidos do ambiente evaporam em maior quantidade, ou ainda se há um demônio que vagueia ao ritmo do vento noroeste. Mas o fato é que Clara sentiu de maneira especial o cheiro forte. O rapaz falante estava muito próximo de nós, com a camiseta regata molhada de suor. Um dos senhores da mesa ao lado, obviamente propenso a achar minha companheira mais interessante que o jogo, percebeu uma luz no rosto dela. Perspicaz, notou os detalhes, narinas e pupilas dilatadas, respiração mais profunda; mas viu também que eu estava em outro estado, de uma outra graça, possuído pela dança dos objetos. Descia sobre nós o desencontro: ela absorvia o movimento do ar, eu era absorvido pelo voo dos sólidos. Mas fui saber disso muito depois, quando fiquei só e o tempo já era outro.
Por fim, o malabarista calado fez um número com tochas. Círculos de fogo desenhavam-se na noite, o respeitável público dignou-se a dirigir um pouco mais de atenção. Possivelmente esta proeza não exigia mais habilidade que as outras, mas o efeito plástico e ritual das chamas fez-se valer. A emoção subiu de intensidade, enfim escutaram-se palmas vigorosas, acho que as mãos de Clara devem ter doído. Alguém pediu “bis”, não foi preciso pedir duas vezes, lá estava um número original pronto para ser apresentado.
Foi então que a tendência dos elementos se atualizou, os espaços de artistas e espectadores devem ser distintos, por mais que um tal teatro de vanguarda que vi na televisão tenha tentado torná-los um só, e estávamos ali muito distantes desses modernismos, qual será a idade do circo? O rapaz suado quis evitar que uma das garrafas, desviada pelo vento noroeste, atingisse Clara. Sabe-se se lá se houve propósito na trajetória desastrada, sabe-se lá que sortilégios tem o ar em movimento, o fato é que o malabarista deu um salto, esticou o braço, desequilibrou-se e rolou por cima da minha namorada, confundindo palco e plateia. Quando vi estavam os dois no chão, ela o apertava contra o corpo e lambia o suor do seu peito, completamente transtornada.
Fiquei pregado na cadeira. O outro moço chegou perto de mim, pegou meu braço, levou-me até o balcão e apontou um banco. Sentei-me, incapaz de reagir. Disse-me:
— Veja se me entende. A vida não tem ensaio, estamos todos em cena desde sempre. Tudo faz parte do espetáculo, até mesmo os fregueses e o vento. Somos os seres dos limites. Nosso dever é desafiá-los. Faça a sua parte.
Fiquei ali sentado, atônito, vendo o Malabarista, no chão, descrever círculos em volta de Clara, ou ela em volta dele, cada um veria uma perspectiva, mas a cena vinha a mim de todos os ângulos possíveis. Como que hipnotizado, observava os panos que se despregavam dos corpos, as mãos hábeis que antes aparavam garrafas agora abriam botões com a mesma e outra maestria, arte que a mulher parecia ter aprendido por encanto, pois acompanhava o parceiro com a mesma precisão, ora com muita rapidez, ora em lenta viagem ao avesso das roupas, para mais além convergiam as bocas, na trilha aberta pela agilidade dos dedos. Bailavam deitados, eu já nem sabia se estava apenas sugestionado ou em plena embriaguez, mas consumira pouco álcool, bebia agora pelos olhos uma poção diferente, seria o conteúdo de uma garrafa encantada?
Olhei curioso para os fregueses, para saber o que pensariam daquela cena em plena calçada. Conversavam muito agitados mas não percebiam nada, sua atenção estava dispersa em outros cantos, havia um túnel de paredes invisíveis à minha frente, só a mim era dado o poder de ver Clara e o Malabarista agora nus, o vai-e-vem se insinuando, pêndulo de movimento nem sempre isócrono, mas o que é aquilo, sangue? A mulher tornou-se virgem novamente, então nada mais é impossível, o líquido a verter do ponto fixo que os unia, derramando-se até a sarjeta, assim o suor, assim as lágrimas, em confrontos diversos já estiveram unidas essas essências vitais, será o êxtase da natureza da água? Da sarjeta ao bueiro, ao esgoto, enfim ao mar, aos céus, à chuva, ao solo, eu seguia em paralelo o caminho úmido por onde circulam as fontes da vida.
Os caprichos do vento traziam-me o cheiro e os sons, sussurros tendendo a gemidos tendendo a quase gritos, ruídos sincronizados. Lembrava-me a cada momento de que nunca houve ensaio, eu era o que sempre ficou na coxia, fui o contrarregra mudo, aquele que fugiu do papel principal, o iluminador cuja lâmpada sempre esteve queimada, mas no chão do palco a luz era viva, chama gerada pelo ritual das peles em fricção. Nos últimos movimentos tudo pareceu tremer, ondas propagavam-se até a terra debaixo do calçamento e chegavam a mim, desequilibrando o que estivesse em cima do balcão. Ouvi ao longe o eco do turbilhão de rajadas líquidas que, em ritmo preciso, escorriam do Malabarista para Clara. Aos poucos a dança cessou, depois veio a calmaria, o Noroeste se foi, uma névoa desceu, o casal esvaneceu-se. E o meu companheiro, os fregueses, os garçons, onde estarão todos eles?
Sinto-me tonto, como se emergisse de um sono longo e profundo. Olho em volta. Estou só, no Zero Grau, sentado no mesmo banco, debruçado sobre a superfície de fórmica. Tenho muita sede. Há duas garrafas à minha frente, nenhum copo. Levo uma delas à boca, mas nada passa pelo gargalo; é sólida, artefato de malabarismo. Agora compreendo. Desperto de vez, chegou minha hora. Pego as armas, levanto e aceito o desafio.
O que vou fazer é difícil, necessita de muito treino.