Depois do almoço

Luiz A G Cancello

Uma de suas tarefas, na quarentena, é lavar louça. Nos finais de semana passava uma água nos pratos e talheres, deixando a parte pesada para a diarista. Agora ela está afastada. Ele encara panelas, frigideiras, assadeiras, raladores, espremedores e uns objetos que só agora passou a conhecer. À companheira cabe fazer a comida, a ele limpar a cozinha. Até o fogão precisa de cuidados, coisa que nem desconfiava.
Iniciou o aprendizado. Deixar a frigideira limpa, depois de um ovo frito, é trabalhoso. O antiaderente não suporta a parte áspera da esponja, há de se usar bastante detergente e esfregar com a parte macia, sem muita força. É sutileza demais. Comidas com queijo derretido, como lasanha, deixam o pirex com uma crosta. Mesmo que o coloque de molho é difícil eliminar os restos. A borda superior da panela de pressão pode ocultar uma craca, atenção ao detalhe. Certos doces que levam chocolate também são um tormento para os lavadores de louça. Tantas coisas!
Tudo isso é tranquilo para a diarista ausente. Pra ele é uma experiência nova, misturada ao trabalho em home office, varrer a casa, limpar o banheiro, colocar as roupas na máquina e/ou recolhê-las do varal, guardá-las, fazer live com os amigos e tantas atividades que não cabem no tempo.
Um dia ela fez feijão preto. De passagem, como quem fala uma coisa banal, disse que o feijão estraga a esponja. Como assim, perguntou, se nem é tão grudento? Ele apodrece logo, a esponja fica fedida, respondeu. Então é isso. Há de se tirar o excesso com a mão e esfregar depois. Registrou mais esse dado.
Manejar o escorredor de louça também tem segredos. Não se deve começar uma lavagem de louça sem antes guardar o que estava secando. E cada peça tem seu nicho. No início perguntava onde se coloca isso ou aquilo. Agora já sabe improvisar e alterar os lugares. Sente-se ousado, estrategista.
Antes julgava os alimentos pela aparência, cheiro e gosto, além de considerar se eram saudáveis. Um outro elemento chega, agora, ao rol de apreciações. Quando a companheira está cozinhando, vai até ela, puxa assunto e observa o número de panelas e o tipo de comida, se é grudenta ou não. Tudo interfere na apreciação do almoço. Pensa no esforço que a limpeza vai exigir. Não faz sentido deixar de gostar de lasanha por tão pouco, mas está acontecendo. Percebe que o feijão pesa no estômago. Constata que nunca foi fã de chocolate. Emagrece.

Ele transita entre o peso das tarefas e o humor possível. Faz graça para driblar os fantasmas que rondam a pia. O vírus muda as rotinas da casa e da mente.
Encara a louça e um desespero o engole, mas pensa que acabou de almoçar e tanta gente passa necessidade. Precisa ser agradecido. Lava a louça com esmero e com o conflito instalado. Há pessoas famintas, desempregadas, há doentes alimentados por sonda, maldita pandemia. Sente culpa de estar saudável, de pertencer à classe média, de ter trabalho, de não sair às ruas gritando, de não fazer mais do que faz. O que faz? Lava a louça com esmero. Fantasia jogar os pratos na parede, sabe que nada vai mudar, já bateu panela mas se sentiu meio idiota, as facas no escorredor suscitam um instinto assassino, quer gritar mas não grita, sente-se exausto.

Publicado no jornal A Tribuna, de Santos, em 27/05/2020