Crítica publicada no jornal “A Tribuna”, de Santos,
no dia 19 de janeiro de 1996.
O cotidiano em fragmentos vivos
Narciso de Andrade
Colaborador
Luiz A. G. Cancello – este A.G. é de Antonio Guimarães, o autor pertence ao honorável clã dos Guimaraes – reúne fragmentos do cotidiano para compor o seu livro de contos há pouco lançado. A publicação deste Dia a-Dia: Fragmentos vem no momento certo, do reencontro de Santos com as atividades culturais, o que é muito bom para uma Villa de 45O e uma cidade de 157 anos.
Quando falo no reencontro com a cultura penso em renovação, um modo atuante de encarar o processo de comunicação cuja mensagem se completa na obra concretizada.
Santos encarou um tempo de estagnação cultural durante alguns anos pós 64 e a situação era muito incômoda para a Cidade, ciosa de suas tradições. O fato não era único no panorama nacional, mas essa realidade dura envenenava a gente. Um amigo, eficiente jornalista, escolheu Santos para morar e trabalhar exatamente pelo clima de agito cultural da terra, que ele namorava desde os anos 6O.
De repente, tudo mudou, cessou o clima de agitação cultural; adeus debates do Clube de Cinema; noites no Clube de Arte onde o teto da casa vicentina de Calixto, encostado na janela da sala, aguardava sua vez; o Centro de Estudos Fernando Pessoa a nos reunir na residência de Francisco Azevedo, ali na Bernardino de Campos, onde Geraldo Ferraz inventava o verbo vanguardar. Ainda está para ser feito o inventário desta Santos que, moço ainda, vivi e convivi. Valeu.
Pois é, a gente começa a falar de um livro e desanda pelo turvo caminho das memórias. Volto ao início, isto é, ao livro e começo logo por transcrever trechos do último conto de forte sabor local, não lhe valesse o título Santos:
“A cidade está esplêndida sob o sol do verão/ A praia segue o costume da cidade/ As pessoas caminham margeando a maré enchente/ Neste momento o mar está calmo/ Tudo parece estar em seus lugares e a luminosidade escancara a harmonia do mundo/ De dentro da água rasa vejo os prédios que o solo arenoso entortou/ O sol inclina-se se agora para o horizonte/ Cai a tarde, caio eu em mim, pesa um crepúsculo vermelho. Santos é bela, a água é tépida, a vida repousa na baía/ Uma rajada de vento frio surpreende a praia. O outono vem chegando por brechas invisíveis”.
Desculpe, Cancello, a mutilação feita com seu derradeiro conto do livro, mas, ao chegar aqui, me deu vontade de extrair o poema nele contido.
Você chamou na gentil dedicatória do meu exemplar de a prosa possível estas histórias desentranhadas de um cotidiano fragmentado pela incisão analítica do psicólogo. Não há outro jeito: é sempre o possível que nos é permitido fazer. Mas, quando é feito com honestidade, sem concessões e com talento, como é o caso, tudo bem; o que vier a mais só acrescenta.
São 29 histórias, lavradas com correção, as palavras certas no lugar exato e a presença constante da Cidade, esta Santos onde acontecem as coisas no Zero Grau, no Cine Iporanga, na praia e até debaixo da ponte do Canal 2. Neste lance, o psicólogo se sobrepõe ao narrador, como em outras passagens do livro. Um psicólogo experiente, um narrador estreante, mas já com a segurança da colaboração em jornais e revistas. Como a Artéria, onde se desdobrava com o Jair de Freitas para manter o ritmo cultural na Cidade.
Dia a Dia: Fragmentos está todo contido no título que apresenta ao leitor o que ele irá acompanhar: coisas da terra em ritmo de ação e contemplação. Como o nosso cotidiano. A obra foi editada, com o apuro técnico costumeiro, por Massao Ono, editor.