Luiz A. G. Cancello
Chamou o irmão mais velho para um canto do velório:
— Rafael, é hoje ou nunca. Acho que a ocasião é propícia para um recomeço.
— De que se trata? Recomeço de quê?
— É uma coisa que preciso confessar faz tempo para limpar a área e rever nossa amizade.
— O negócio é comigo? Mas o que foi? É grave?
— Para você talvez não pareça grave ou importante. Mas me atormenta há muitos anos.
— Então fala. Neste momento não consigo imaginar o que pode ser.
— Lembra de quando a gente morava na casa da rua da Oliveiras?
— Claro, passamos a infância lá. Que pergunta!
— Acho que estou enrolando um pouco. Lembra do quarto?
— Mais ou menos. Isso faz mais de trinta anos, caramba.
— Faz um esforço de memória. A gente subia a escada — era um sobrado, você não pode ter esquecido — pegava um corredor pequeno e entrava no quarto. Logo em seguida era o banheiro.
— É mesmo, que interessante, a imagem agora veio bem clara.
— Ótimo. E de quem era a cama mais perto da porta, em frente ao armário embutido?
— Sei lá, você está querendo demais.
— A primeira cama era a sua. Você esqueceu por que tem mais idade. Já está com a memória balançada.
— Deixa de ser bobo. Tenho dois anos a mais que você. Na nossa idade não significa nada.
— Claro. Eu estava brincando. Ainda é um bom jeito de levar as dificuldades.
— Mas onde você quer chegar, com essa planta do nosso quarto?
— Bem, é o seguinte. Você ia para a escola antes, não sei por quê.
— Era a aula de Educação Física. Três vezes por semana.
— Puxa, que alívio! Isso foi um mistério para mim, nos últimos anos. Eu não conseguia saber o motivo dessa defasagem temporal.
— Ai, defasagem temporal! Deixa de frescuras, fala como gente.
Tia Gumercinda, famosa por suas citações de livros de auto-ajuda, acercou-se dos irmãos. Disse que tudo se dá a seu tempo, os sobrinhos já eram homens e haviam constituído família, enfim, era a lei da vida, que traz dores mas também dá frutos. Falou em tom solene, como o mestre que revela aos discípulos o mistério da existência. Deu um beijo em cada um e afastou-se.
— Vamos lá. Eu tomava banho quando você já estava saindo. Chegava no quarto e você já estava no caminho da escola.
— Pelo jeito, você fazia alguma coisa proibida. O que era? Brincava com o pipi?
— Não, isso eu fazia no banheiro.
— Então o que era, porra?
— Eu abria a porta do armário e sentava na sua cama.
— E daí?
— Aí é que está. Hoje eu acabo de enxugar o saco e a bunda, o rego, com o secador de cabelos da minha mulher. Naquele tempo acho que a mãe não tinha secador no banheiro. Ou o secador ainda não tinha sido inventado.
O irmão sorriu discretamente, estavam num lugar de tristeza. Deixou um silêncio no ar. O rosto, no entanto, logo foi tomando um ar zombeteiro. Mesmo assim olhou com carinho para o mais novo.
— Entendi. Enquanto sentava na minha cama, escolhendo a roupa, aproveitava para secar as partes baixas no meu lençol.
— É isso. Saco, períneo, rego, tudo. Recordo muito bem a sensação que me dava. Um prazer misturado com culpa. De vez em quando tinha a impressão de que você poderia voltar para casa, por algum motivo, e me pegar em flagra. Era uma sensação de fazer coisa proibida. Eu também me preocupava com a mamãe, ela estava sempre no andar de baixo, preparando meu café. De vez em quando me chamava, para me apressar. Eu ficava olhando, ansioso, para a mancha triangular impressa no lençol. Em pouco tempo ficava seco, mas a possibilidade de alguém entrar e perguntar pela origem daquela umidade na cama dava a maior adrenalina.
— Desculpe, mas isso é cômico. Adrenalina comigo era surf e skate. Tenho um amigo psicólogo que iria se deliciar com essa história, mas acho tudo isso meio babaca. Só não estou rindo porque vejo que o assunto é sério. Incrível. E o que você espera que eu faça, agora?
A mãe foi chegando junto à conversa, perguntou um tanto aflita se estava tudo bem, notara o ar gozador de um e a expressão aflita do outro. Sempre fora preocupadíssima, característica irritante para marido e filhos. Agora o patriarca estava livre de todas as aporrinhações. Os irmãos logo deram um jeito de afastá-la, dizendo que ela precisava dar atenção aos presentes.
O mais novo continuou:
— Não sei com a novela acaba. Imaginei tantos muitos desfechos para o caso. Num dos finais você me dava uma porrada, em outro caía mesmo na risada, ou compreenderia e me abraçava, embora não seja do seu feitio. Ou não dava a menor bola. Nunca me decidi por um dos cenários possíveis.
— Ai, novela, cenários, que drama… decida de uma vez.
— Que tal você passar um final de semana lá em casa e enxugar o rabo na minha cama? Eu saio, vou para o sítio de um amigo. Ficaríamos quites, ao menos simbolicamente.
— Você está ficando maluco. O que eu digo pra minha mulher? Que vou me vingar do meu irmãozinho, esfregando a bunda no lençol dele?
— Desculpe, mas agora é você quem tem de decidir. Estou só propondo uma forma de compensar o que fiz.
— Mas todo esse caso para mim não significa nada, é uma curiosidade, fico admirado de ver você tão envolvido, sei lá o que dizer ou fazer.
— Por favor, respeite meus sentimentos. É muito importante para mim resgatar esse passado e a nossa relação.
— Mas não há nada a resgatar, deixa de falar difícil, sempre nos demos bem. Você já fez a confissão, está tudo certo, acho que contaria o caso para os meus filhos e todo mundo morreria de rir.
— Não, por favor. Isso deve ficar entre nós. Você não está percebendo a importância que a coisa tem para mim. Meus sentimentos nunca foram respeitados lá em casa. Eu sou diferente de vocês.
— Mais essa, agora! É melhor a gente tomar uma cerveja e esquecer o assunto.
— Você sempre foi desse jeito, prático, objetivo, insensível. A vida não é assim, vai-se esquecendo os episódios e fingindo que tudo está resolvido. Esse é o seu estilo, não o meu. Há rituais para que o tempo recomece.
— Gabriel, não enche o saco. Esse papo começou por que você queria me contar uma coisa que te afligia e estava relacionada comigo. Pronto, já contou, eu não fiquei bravo ou magoado, levei até no humor, apesar da situação. O que mais você quer?
— Não sei. Tenho vontade de chorar. É como se todo aquele frisson que eu sentia ao esfregar o saco e a bunda no seu lençol fosse nada, mera fantasia, não fizesse mais parte de mim. É isso. Você banalizou tudo, traiu minha confiança, roubou uma parte da minha história.
Houve uma discreta agitação no ambiente. Entrou uma mulher de uns 45 anos, bem vestida, que ninguém conhecia. Estava com enormes óculos escuros. Uma cena clássica. Até a conversa dos irmãos foi interrompida. Sem olhar para ninguém, aproximou-se do caixão, rezou e foi-se embora. Se houve comentários, foram deixados para depois. O silêncio tomou a sala.
Rafael olhou para o irmão com um ar irônico, mas viu o choque no rosto do outro. Apontou os olhos para o caixão, como a relacionar dois assuntos:
— Lamento ter roubado alguma coisa ou traído alguém. Sempre me considerei um cara honesto.
— Não faz tira sarro, por favor. Posso abraçar você?
— Céus, por quê?!
— Sei lá, me deu um desamparo.
— Então abraça. Se chorar melhor ainda, as pessoas vão pensar que é emoção pela perda do papai.
Chegou o padre para a extrema-unção. Parentes e amigos comoveram-se com a cena entre os filhos do morto. Ouviu-se um comentário, não se sabe se irônico ou sincero:
— A família deles sempre foi muito unida.