Conceitos da Psicologia popular: Trauma e Catarse. Uma discussão.

           Luiz A. G. Cancello

            Uma das áreas onde a “realidade” é um conceito dos mais controvertidos são as teorias psicológicas. Há idéias que se tornam populares e passam, para todos os efeitos, por serem “reais”. Mas uma pergunta impõe-se: como as coisas adquirem seu caráter de “reais”? Vamos nos basear, para dar início à discussão, num elegante capítulo de Dulce Critelli:

O Movimento de Realização

Não basta aos entes estarem simplesmente por aí para serem reais. Tudo o que há só chega à sua plena existência, isto é, torna-se real:

– quando é tirado de seu ocultamento por alguém, desocultado — DESVELAMENTO;
– quando desocultado, esse algo é acolhido e expresso através de uma linguagem — REVELAÇÃO;
– quando linguageado, algo é visto e ouvido por outros — TESTEMUNHO;
– quando testemunhado, algo é referendado como verdadeiro por sua relevância pública — VERACIZAÇÃO;
– quando publicamente veracizado, algo é, por fim, efetivado em sua consistência através da vivência afetiva e singular dos indivíduos – AUTENTICAÇÃO.

A ocorrência destes elementos constitui o que aqui chamamos de movimento de realização do real. A estruturação deste movimento nas cinco etapas indicadas tem, neste estudo, apenas caráter demonstrativo. Seu desdobramento não é linear, mas necessariamente simultâneo […][1]

Serão examinados, a seguir, os conceitos de “trauma de infância” e de “catarse”, à luz das instâncias descritas no trabalho de Critelli.

         A Teoria do Trauma

            Uma vez desvelado por Freud, através de suas primeiras incursões na hipnose, nomeado e divulgado em publicações — portanto testemunhado por respeitáveis conselhos editoriais e, posteriormente, lido por aqueles a quem chamaríamos hoje de “formadores de opinião — o “trauma de infância” caiu no linguajar comum e assumiu relevância pública. A partir daí o indivíduo já pode conceber a si mesmo como tendo (ou sendo vítima de) tais traumas. A realidade do fenômeno percorre assim um caminho circular: eu sinto, logo deve existir; existe, “logo” eu o sinto. Muitos pacientes chegam ao consultório de terapeuta com a frase já pronta: “Doutor, não sei por que faço tal coisa. Deve ser um trauma de infância”.
            Há uma compulsão, possivelmente derivada do sucesso das explicações calcadas nas disciplinas físicas e em suas espetaculares realizações tecnológicas, através do método científico, de se procurar uma e uma só causa simples para a complexidade do real. O trauma funcionaria como um Big Bang psíquico, concentrando em um ponto a origem da configuração específica do universo adulto. Fica assim implícita uma certeza: é possível compreender, imediatamente, o mundo e a vida do outro. Para tanto basta estar de posse da teoria correta.
Uma “ansiedade explicativa” foi criada pelo êxito utilitarista do mundo da técnica. É muito penoso suportar a idéia de eventos não redutíveis (imediatamente!) a causas conhecidas. Nada garante, porém, a aplicabilidade do mesmo raciocínio aos fenômenos humanos. É bastante ingênuo conceber a complexidade do comportamento como resultante de um ou dois acontecimentos fundamentais. Além disso, seguindo-se o mesmo modelo, o conhecimento da origem causal deve levar a um controle sobre o fenômeno. Este encadeamento de idéias fica mais claro no parágrafo seguinte.

            Talvez a lenda mais consistente do século XX sobre a psique humana seja a teoria da repressão, origem de todas as considerações de haver algo “no fundo” ou “por trás” dos comportamentos observáveis. Esse ponto de vista foi resumido por Steele[2]. Diz a teoria

“que nós esquecemos eventos porque eles são horríveis de serem contemplados; que nós não podemos nos lembrar desses episódios esquecidos por nenhum processo normal de rememoração, mas podemos seguramente retomá-los através de técnicas especiais; que esses fatos esquecidos, banidos da consciência, esforçam-se por entrar no consciente sob formas disfarçadas; que eventos esquecidos têm o poder de causar, em nossas vidas, problemas aparentemente não relacionados com eles, que podem ser curados ‘escavando-se’ e revivendo-se aquelas lembranças reprimidas.”

Ou seja, os detentores de técnicas adequadas têm o poder de controlar o processo, revertendo-o. E “onde” estão aquelas recordações? No inconsciente, na vida intra-uterina, no lado esquerdo ou direito do cérebro, nas vidas passadas, ou em outros planetas, se eram os deuses astronautas? O caminho do conhecimento psicológico certamente não passa por aí.

            As pesquisas de Elizabeth Loftus chamam a atenção para alguns absurdos praticados em nome da “teoria do trauma”, variante muito divulgada da “teoria da repressão”. Em um artigo[3], conta o seguinte caso (perdoem-me a longa citação):

“No verão de 1993, uma mulher (chamada “Willa”) teve um sério problema. Sua irmã mais velha, uma artista batalhadora, teve um sonho que contou à terapeuta. O sonho foi interpretado como evidência de uma história de abuso sexual. No final, a irmã confrontou os pais com uma sessão gravada no consultório da terapeuta. Os pais ficaram mortificados e a família foi separada irreparavelmente.
Willa tentou desesperadamente saber mais sobre a terapia de sua irmã. Por sua própria iniciativa, contratou uma investigadora particular para passar-se por paciente e procurar tratamento com a terapeuta de sua irmã. A investigadora particular deu-se o nome de Ruth. Ela visitou a terapeuta duas vezes, uma M.A. em aconselhamento que era supervisionado por uma PhD, e secretamente gravou as duas sessões.
Na primeira sessão, Ruth disse à terapeuta que havia sido atropelada em um acidente de carro alguns meses atrás e estava tendo problemas em superar isso. Ruth disse que ficava sentada chorando por semanas por nenhuma razão aparente. A terapeuta parecia totalmente desinteressada em qualquer história relacionada ao acidente, mas queria falar sobre a infância de Ruth. Enquanto discutia sua infância, Ruth relatou, de forma espontânea, um sonho recorrente que havia tido quando pequena, e disse que o sonho agora retornara. No sonho ela tem 4 ou 5 anos e tem um enorme touro branco atrás dela, que a pega e a atinge com os chifres na coxa, deixando-a coberta de sangue.
A terapeuta declarou que o stress e tristeza que Ruth estava atualmente experimentando estavam ligados a sua infância, pois ela teve o mesmo sonho quando criança. Ela declarou que os ‘terrores noturnos’ (como os chamou) eram provas que Ruth estava sofrendo de distúrbio de stress pós-traumático (PTSD). Elas usariam o recurso de imaginação dirigida para descobrir a fonte de seu trauma da infância. Antes de realmente usar esse método, a terapeuta informou sua paciente que ela, a terapeuta, era uma sobrevivente de incesto. ‘Eu fui incestada pelo meu avô.’
Durante a imaginação dirigida, foi pedido a Ruth para imaginar-se como uma criança pequena. Ela então falou sobre o trauma do divórcio de seus pais e sobre o casamento de seu pai com uma mulher mais nova, que se parecia com ela. A terapeuta queria saber se o pai de Ruth havia tido romances, e disse à paciente que o seu pai (da terapeuta) havia tido, e que isso era uma coisa ‘geracional’ que vinha dos tempos de seus avós. A terapeuta levou Ruth através de fantasias manipulativas/sugestivas/confusas, envolvendo um homem sujeitando uma criança em algum lugar de um quarto. A terapeuta declarou que Ruth estava sofrendo de uma “conseqüência sofrida” (‘major grief issue’) e disse a ela que era sexual. ‘Eu não acho que, com as imagens obtidas e com o seu casamento com alguém que parece você, que isso possa ser outra coisa.’
Dois dias depois a segunda sessão começou:
Pseudopaciente: Você acha que posso ser uma vítima de abuso sexual?
Terapeuta: Um-huh. É bem possível. É como eu colocaria. Sabe, você não tem dados reais e definitivos que indiquem isso, mas, hum, a primeira coisa que me fez pensar nisso foi o sangue em suas coxas. Você sabe, eu só me pergunto como aquilo viria da realidade de uma criança. E, hum, o fato que na fantasia a criança levou-a, ou mostrou a você o quarto, e seu pai sujeitando-a ali… seria realmente difícil para mim pensar de outra maneira. Alguma coisa deveria surgir que provasse realmente que não foi abuso sexual.
Ruth disse que não tinha nenhuma memória de tal abuso, mas isto não dissuadiu a terapeuta em nenhum instante.”

            Nenhum psicoterapeuta “sério” procederia dessa maneira, é claro. Mas continua sendo espantosa a quantidade de pessoas, profissionais ou não, pautando-se pela crença nos “traumas de infância” como determinantes das condutas do adulto. A persistência dessa convicção tem raízes históricas, que não vêm ao caso aqui.
            As pesquisas de Elizabeth Loftus tomaram corpo quando um número significativo de “sobreviventes do incesto” começou a ir aos tribunais em busca de indenizações milionárias para um suposto mal sofrido em tempos remotos. Depois de o dinheiro entrar em cena o assunto tornou-se crucial; começou-se, então, a investigar a duvidosa realidade de tantos episódios incestuosos. Antes disso, os acontecimentos restritos aos consultórios pouco ou nada importavam aos investigadores com maior prestígio e poder de obtenção de recursos para investigações científicas.
            Em outro momento do mesmo artigo, Loftus[4] confronta a utilização atual da teoria do trauma com a antiga prática de caça às bruxas:

“Nós vivemos em uma época estranha e precária, que parece semelhante à época do fervor da histeria e superstição dos julgamentos das bruxas nos séculos XVI e XVII. Homens e mulheres estão sendo acusados, julgados e condenados sem nenhuma prova ou evidência de culpa, a não ser as palavras do acusador. Mesmo quando as acusações envolvem numerosos acusados, que provocaram sérios danos durante muitos anos, até mesmo décadas, as palavras do acusador são suficientes para convencer juizes e jurados. Indivíduos estão sendo encarcerados por evidências fornecidas por memórias que voltam em sonhos e flashbacks – memórias que não existiam até a pessoa, em processo terapêutico, ser perguntada diretamente: ‘você já foi sexualmente abusada quando criança?’. E então começa o processo de escavação das memórias “reprimidas” através das técnicas terapêuticas invasivas, tais como regressão, visualização direcionada, transe, trabalho com sonhos, trabalho corporal e hipnose.”

            Acrescentem-se outras informações para reforçar a analogia: sabe-se de centenas de mulheres declarando terem sido violentadas pelo demônio, em aldeias européias medievais. A crença não se restringe aos especialistas, espalha-se pela sociedade e, literalmente, passa a fazer parte do real. Estamos observando coisa semelhante no final do século XX.
            Os trabalhos de Elizabeth Loftus chegaram a resultados espantosos. Apenas 25% das memórias de abuso sexual por ela investigadas mostraram-se verdadeiras. Outras 50% eram recordações bastante contaminadas com fantasias, e 25% revelaram-se inteiramente falsas.

A Teoria da Catarse

            Uma amiga me fala que seu filho é muito desligado. Ela pede que ele guarde suas roupas, mas o rapaz não a obedece. “Vou acumulando a raiva”, diz. Depois de uns três dias em que o menino ignora a ordem da mãe, esta me conta que “explode”. Grita, ameaça o garoto de castigo, e só assim consegue seu intento.
            É ilustrativo o modo como a moça equaciona seu problema. Ela se concebe como um sistema fechado, onde a energia se acumula, para, afinal, libertar-se mediante uma explosão. Sabe-se que este modelo de “caldeira” é tão ou mais difundido que a teoria do trauma. Assim a idéia de que socar almofadas “libera” a raiva tomou forma, assim as mães mandam seus filhos para o judô para “liberar agressividade”.

            Há pouco tempo, numa revista de divulgação científica[5], foi publicada a seguinte notícia:

            Deixe o travesseiro em paz

Socar o travesseiro pode não ser uma boa solução para os momentos de fúria. Uma pesquisa divulgada em abril deste ano, nos Estados Unidos, mostrou que “descarregar” a raiva em alguma coisa ­ou em alguém – só faz aumentar a agressivìdade. 0 psicólogo Brad Bushman, da Universidade do Estado de lowa, submeteu 700 estudantes a situações em que eles eram insultados por um colega não-identificado. Quem quìsesse, podia descontar a ira com um saco de pancadas. Alguns aceitaram a sugestão; outros, não. Na etapa seguìnte, os ofendidos puderam se comunicar com seus ofensores, por computador. Aqueles que haviam optado pelo saco de pancadas se mostraram muito mais agressìvos do que os demais.

            O experimento desmente a “teoria da catarse”, que seguiu, em sua afirmação como “verdade”, os mesmos passos da “teoria do trauma”. Mas uma revista de divulgação não apresenta a “seriedade” suficiente para que se possa citá-la em um trabalho científico como fonte de referência (esta particularidade será retomada mais adiante). Recorrendo aos recursos de busca da Internet, em poucos minutos é possível achar a Home Page do autor do experimento, bem como a fonte e mesmo o texto integral que  apresenta a experiência[6]. A revista foi feliz em seu breve resumo. Nos comentários ao artigo, Bushman se pergunta sobre o motivo de a teoria da catarse ter tanto crédito junto ao público leigo, e por que as pessoas são persuadidas que “descarregar” agressividade é o melhor meio de livrar-se de um estado interior desagradável. Sugere três possíveis causas para essas crenças[7]:

            “Em primeiro lugar, as técnicas de catarse são largamente utilizadas por psicólogos populares (“pop psychologists”), e são muito citadas na literatura comum. Em segundo, as respostas do tipo catártico devem ser as respostas mais naturais a situações desencadeadoras de raiva. (…) Em terceiro, as pessoas podem pensar que, se as teorias da catarse mantiveram-se durante tanto tempo, devem ter alguma validade.

            O último ponto é particularmente interessante. A teoria terá alguma validade por ter se mantido como senso comum durante tanto tempo; logo, eu “sinto” a energia ser liberada. É o mesmo argumento circular, a mesma estrutura de tornar-se realidade descrita por Dulce Critelli.

            Curiosamente, há um outro percurso que o tornar-se real percorreu, nas citações feitas neste breve trabalho. A primeira referência ao trabalho de Elisabeth Loftus foi lida no jornal “Folha de São Paulo”[8], e o experimento de Brad Bushman, como já foi dito, na revista Superinteressante. Para que esses autores pudessem ser aqui citados, tais fontes “populares” não seriam, digamos, de todo confiáveis. O testemunho dos chefes de redação não é válido para um texto que se pretenda “sério”, em termos acadêmicos. Os periódicos “respeitáveis” em que Loftus e Bushman mostraram seus resultados foram pesquisados (virtualmente!) através da Internet. Depois de citadas as fontes, tudo o que foi exposto torna-se “mais real”, por ter sido desvelado por pesquisadores doutores, por ter sido publicado em linguagem técnica, por ter passado pelo testemunho insuspeito dos Conselhos Editoriais de prestigiosas publicações científicas, por ter adquirido relevância .pública através desses veículos, e agora (espera o autor) ter sido efetivado em sua consistência através da vivência afetiva e singular dos leitores deste trabalho[9].

ca. 1999

[1] Critelli, Dulce Mára, “Analitica do Sentido”, p. 69.

[2] Steele, D. R. 1994. Partial recall. Liberty, March, pp. 37-47. Citado em Loftus, E. “Remembering Dangerously”, texto obtido na Internet, URL http://weber.u.washington.edu/~eloftus/Articles/witchhunt.html, em 12/03/1999

[3] Loftus. Elizabeth, ” Remembering Dangerously”, Skeptical Inquirer: March, 1995, Vol. 19 ; No. 2 ; Pg. 20. Texto obtido da Internet, URL http://weber.u.washington.edu/~eloftus/Articles/witchhunt.html, em 12/03/1999.

[4] Loftus, op. cit.

[5] “Deixe o travesseiro em paz”, Rrevista Superinteressante, Edição especial sobre Emoção e Inteligência, maio de 1999, p. 9.

[6] Bushman, Brad, Journal of Personality and Social Psychology, January 1999 Vol. 76, No. 3, 367-376.

A Home Page de Brad Bushman é http://psych-server.iastate.edu/faculty/bbushman/homepage.htm.

[7] Bushman, Brad, op.cit. Texto retirado da Home Page do autor.

[8] Jornal “Folha de São Paulo, Caderno MAIS!, Seção “Ciência”, 23 de agosto de 1998,

[9] Conforme os elementos de realização do real descritos em Critelli, Dulce, op. cit, p. 69.