Texto original:
Revista Artéria
Ano III, junho de 1992, p. 67-76
Publicação da Secretaria da Cultura de Santos
Prefeita: Telma de Souza (PT)
Secretário da Cultura: Prof. Reinaldo Martins.
Editores da Revista: Jair S. Freitas e Luiz A. G. Cancello (adjunto)
Entrevistadores: Luiz A. G. Cancello e Jair de Freitas.
Edição da entrevista: Luiz A. G. Cancello
Monólogo dos três cidadãos
Ilustrações de Fê, Bar e Cláudio Andress V. Arriagada
Este é o depoimento de Carlos Alberto. Ele é mais conhecido pelo nome de Marcelo Bruno, locutor da Rádio Tantan, programa que vai ao ar de 2ª a 6ª feira, às 16h00, pelas ondas da Rádio Clube de Santos. Carlos, hoje, faz parte do Centro de Convivência da Casa de Saúde Anchieta. Ele conta, aqui, um pouco da sua história. O monólogo surgiu de uma entrevista exclusiva para a Artéria. Nossas perguntas mostraram-se, quando da edição, perfeitamente dispensáveis. Com o ajuste de uma ou duas palavras, para dar o efeito de continuidade, e a retirada de algumas repetições comuns na linguagem falada, este é o discurso de Carlos Alberto, aliás Marcelo Bruno, aliás…
Eu sou um cara que mora em S. Vicente, criado num bairro pobre, com família pobre. Eu estudei muito a minha vida inteira. Era um cara que sempre via que a dificuldade estava à minha volta e eu tinha de vencer certas barreiras. Quando houve uma proposta, no governo do Figueiredo, ele chamou a juventude para se transformar em técnicos. O Brasil precisa de homens e livros, não sei se vocês se lembram dessa frase. Foi quando eu me interessei por eletrônica. Eu já tinha cerca de 18 ou 19 anos e fui para a escola técnica. Tornei-me um profissional e técnico em eletrônica.
Eu sou de Santos. Nasci em Santos, mas eu morava em São Vicente. Quando eu me formei, em 1982, comecei a exercitar a minha profissão. Quando deu 6 meses depois de formado, peguei e adoeci. Foi a primeira vez que eu tinha perdido a minha memória. De lá para cá eu fiquei sem eixo de referência com relação à minha pessoa. De 83 pra cá, eu estava fazendo tratamento, mas não conseguia buscar o meu verdadeiro eu, aquilo que eu sempre tinha sido na vida.
Quando eu falei pro médico que a minha cabeça estava vazia, a zero, ele falou assim: “Olha, o que eu posso te dizer é o seguinte: é melhor você ir jogar bola, ir namorar, ir pro cinema, por que isso aí é uma consequência da vida, tudo isso passa.” Eu demorei três anos pra entender o que o cara tinha falado. E eu falava pra mim mesmo: “Pô, como é que eu tenho tantos aparelhos em casa em eletrônica e não consigo me lembrar nada da profissão, sendo que eu estudei isso? Como é que eu pude ter tantas boas notas assim no primário, ginásio e colegial e não consigo ter uma boa capacidade, de cultura, por que é que eu estou a zero?” Então vieram todas essas interrogações e coisas similares.
Foi quando eu decidi abandonar aquela busca pelo Carlos Alberto, por tudo aquilo que eu tinha construído de sentimento, de conhecimento, emoção e coisa parecida. E resolvi me reestruturar. Nessa ocasião eu caí fora de São Vicente e vim pra Santos. Eu morava ainda em São Vicente, mas comecei a passar a minha vida mais frequentemente aqui em Santos. Aí, ao invés de me chamarem pelo apelido, eu preferi que eles me chamassem de Pereira. Não me chamaram mais do apelido Patola, porque eu guardei o nome. Fazia parte de um passado, segundo a minha convicção. Aí era Pereira pra cá, Pereira pra lá, e eu me refiz.
Quando chegou em 1990, tive um outro episódio de amnésia. Eu estava indo jantar num restaurante; estava com muito dinheiro no bolso. Eu estava num ônibus e daí a pouco a mente começou a ter um novo colapso. Outras idéias avançando o cérebro, posso dizer isso, em termos literais, e eu fui me esquecendo do Pereira. Comecei a ter idéias de ir para o Rio de Janeiro. Desci do ônibus – era a linha 39 – fui para a Rodoviária, tomei um ônibus da Rodoviária pra São Paulo, onde cheguei lá pela uma hora da manhã. Fiquei esperando o ônibus das 6 horas para ir para o Rio. Mas dali por diante aquela coisa toda que eu já tinha construído de Pereira já tinha se desmoronado. Mas então eu toquei pro Rio, onde eu fiquei 4 meses. Todo amnesiado daquele trabalho que eu tinha feito anteriormente.
Fiquei passando por lá, revirando todas as idéias. Andava pelo meio da rua, sempre com a intenção de arrumar um trabalho, sempre com aquela idéia de sair da rua… as coisas que batiam no coração do Namor Monderline Cicorone – até então, eu. E eu fui me relacionando bem com as pessoas. Eu cheguei até a tomar banho na casa antiga do Rui Barbosa, só para vocês terem uma idéia. Por que o carioca se afeiçoou pelo Namor Monderline Cicorone, pois o Namor era o cara que o carioca queria ser, entendeu? O que eles queriam ser, como pessoas, era eu. Por que eu andava pra lá e pra cá… eu achei um lenço uma vez, muito bonito, de seda, acho que era de uma mulher muito rica. Eu colocava na cabeça aquele lenço e andava pra lá e pra cá, já estava bem cabeludo e barbudo. Ficava andando pra lá e pra cá, tomava ônibus, ia por Copacabana, descia, ia pra Ilha do Governador. Fui ficando muito conhecido ali no Rio. Eu conversava muito com a polícia, aquele papo todo. Aí o pessoal foi me conhecendo, e embora eu fosse um indivíduo de rua, os caras me levavam pro restaurante pra jantar, pra comer pizza, pra almoçar… eu estava tendo um círculo de amigos muito bom.
Namor Monderline Cicorone foi a identidade que eu dei pra ele. Um cidadão que veio de Mônaco, perdeu-se aqui, estava procurando a mãe. Essa é a história que girava na minha cabeça, então eu ia falando. A mente é criadora, quem é que segura a mente? Tem cara por aí que diz que a mente é dominada. Não é o meu caso… E Freud e Dostoiévski, a gente vai ter que quebrar o pau. Então houve toda essa harmonia, tá entendendo?
Aí eu perdi minha carteira de identidade. Pois eu dizia assim: “Meu nome é Carlos Alberto Pereira.” Mas na cabeça eu não era Carlos Alberto Pereira, na minha mente eu era o Namor Monderline Cicorone. Aí eu joguei a minha carteira de identidade fora. Eu pensava: “Pô, como é que eu posso ser o Namor Monderline Cicorone, sendo que eu sou o Carlos Alberto Pereira?” Quando começou a entrar um pouco em choque esse tipo de idéia, eu joguei a minha carteira de identidade fora. Que era a verdadeira, a da minha personalidade perene. Passei 4 meses lá no Rio. Ia pra lá, pra cá, passeava, entrava em igreja, saía, todo mundo era meu amigo. Eu era um cara muito educado, falava as coisas que eles queriam ouvir, fazia as coisas que eles queriam fazer, como eu já mencionei. Chegou a hora de voltar pra casa.
Chegou a hora porque eu tomei uma bomba no meio da cabeça. Eu tomei um murro de um cara, com uma pedra. O cara fechou a mão… sabe uma pedra dessas da calçada, aí. Tinha uma molecadinha mexendo comigo, brincando de jogar pedra. Eu estava ficando meio invocado, e falei: “Vou botar essa molecada pra correr”. Então peguei uma pedra e atirei por cima da criançada. “Agora eu vou fazer a pedra descrever um arco parabólico”, aí eu joguei por cima. Mas sabe como é esse tipo de pedra, ela é diferente das comuns, ela bate e rola, como uma bola, ela não bate e pára. O quê… eu joguei e a pedra bateu, ela foi pingando como uma bola e bateu no calcanhar de um brutamontes, bicho. Não sei se vocês conhecem um pouquinho o carioca. Ele é muito bom quieto. Tomou aquela porrada no calcanhar. Eu estava parado, olhando, mas não deu pra disfarçar. Nossa, o cara estava a uns 50 metros longe de mim. Ele pegou a pedra na mão… carioca é assim, mostra o crime: “Tá vendo o teu crime? Agora toma punição.” Ele veio.
Aí eu fiquei olhando, olhando… quando ele chegou perto de mim, “Olha, tá vendo o que tu fez?”, “Eu não fiz por maldade”. Mas não é assim. Pra eles precisa pedir perdão. Quando eu falei “não fiz por maldade”, ele me deu um murro com a pedra na cabeça. Aí eu quis enfrentar o cara. Tomei um chute na perna e resolvi parar.
Foi então que a memória com relação a Santos começou a voltar. Muito embora eu não tivesse a minha personalidade de Carlos Alberto, eu falava: “Eu acho que eu tenho parente em Santos”. E aquilo fugia da mente. Daqui a pouco voltava o mesmo pensamento: “Acho que eu tenho parente em Santos.” Aí eu comecei a insistir para me trazerem pra Santos. Mas ninguém queria me trazer, já estavam acostumados comigo. Então eu comecei a ver que o pessoal, no Rio de Janeiro, faz preparo físico em certos parques. Todo mundo se preparando fisicamente, eu falei: “Pô, por que eu não posso me preparar fisicamente e ir pra casa, ver se eu tenho parentes mesmo em Santos?” Aí comecei a correr que nem o pessoal corria. Corria pra cá, corria pra lá, fui ficando forte, uma alimentação mais cerrada.
Eu entrava nas padarias e pedia para um cara me pagar alguma coisa, pedia pra outro beber alguma coisa, ou então eu mesmo pedia pro dono da empresa pra comer… Como eu era muito educado e sabia conquistar o coração das pessoas, elas me atendiam.
Era o final da Copa do Mundo, deu o último jogo, o Brasil não estava, eu falei: “Acho que é hoje que eu vou embora pra Santos. Aí veio aquela barreira: “Mas eu vou embora como? Como é que se chega daqui ao outro lado da praia?” Porque eu ficava ou na praia ou no Botafogo, na periferia. “Não é andando?” Por que era longe pra cacete. “Então eu vou pra casa andando”. Por que é assim que um homem se desloca. Aí peguei o caminho pelo costado da praia do Flamengo e fui andando. Cruzei todo o Flamengo, o cais, o aeroporto, fui cruzando. Peguei a Avenida Brasil, peguei um ônibus que ia pra Anchieta.
Eu sei que cruzei uma estrada, lá, não lembro o nome da rua. Era uma rua que tinha um tráfego tão intenso que só de ônibus você poderia cruzar aquela avenida. Eu cruzei. Aí, pelas placas, eu ia lendo: Santos. Tem um ônibus que vai direto daqui pra lá, é o Normandie. Eu vim pela estrada que o Normandie pega. Fui pegando os atalhos – como na Imigrantes, aqui: Prefeito José Monteiro, aquela outra, até chegar na verdadeira Imigrantes. Fui tomando esses atalhos. Quando eu tinha grana, tomava o coletivo que seguia reto por essas estradas. Quando não tinha grana, andava quilômetros e quilômetros. Mas era aquela história: quando eu via uma dona de casa fazendo alguma coisa no quintal ou no portão eu ia lá e pedia comida. Porque no meu entendimento eu achava que, se eu estou andando, e muito, eu estou desprendendo muita energia. Então vou precisar consumir mais calorias, que é pra aguentar a caminhada. Aí eu vim andando.
Eu sei que em três dias e três noites eu cheguei em São Sebastião e fiquei por lá. Aí de novo houve aquela associação com o pessoal. Porque eu, como Namor, tinha a capacidade de perceber a inclinação das pessoas. Cheguei em São Sebastião, era nêgo me dando dinheiro… eu não pedia, eu estava no meio da rua, olhava pra lá, olhava pra cá, escutava: “Pega um dinheiro aí, vai tomar um café”. Eu ia tomar café. Daí a pouco dava fome. Passava cinco minutos (falando de modo simbólico), dava fome de novo. Eu ia no bar, lá na padaria, o cara me dava comida.
Fui ficando em São Sebastião. Batia papo com um, batia papo com outro, e eu queria vir pra cá pra Santos. Mas andando, pelo meu caminho, tá entendendo? Foi quando, em São Sebastião, eu encontrei um amigo da família. Desde pequeno eu conhecia esse cara. Aí eu falei “Oi, Ricardo, tudo bem?” Mas eu estava na obstinação de chegar aqui em Santos, que eu nem falei assim pra ele: “Pô, Ricardo, me leva pra casa.” Eu também não tinha condições de memória, de raciocínio, pra poder falar isso pra ele.
Quando ele me viu, chamou um policial e me abordou só depois. Porque a gente não pode – não sei se vocês sabem – você não pode mexer numa pessoa, tirar uma pessoa de um determinado local e levar pra outro sem ter um B.O., porque você fica responsável pela pessoa. Aí ele fez o B.O. e me levou pra casa onde ele estava hospedado. Passei uma tarde e uma noite ali, e as minhas irmãs vieram me buscar no outro dia de manhã.
Nesse tempo todo eu não estive em nenhuma instituição psiquiátrica. O Namor Monderline Cicorone não é o Carlos Alberto. O Carlos Alberto não é o Namor Monderline Cicorone. Era uma pessoa. Se o psiquiatra viesse conversar comigo, ele não ia me dar como louco, lá no Rio de Janeiro. Porque eu era uma pessoa… ele poderia me dar como doente se ele soubesse que eu era o Carlos Alberto e estava falando que era o Namor Monderline. Aí ele fala: “Ele está doente”.
Mas eu estava sem carteira de identidade, me chamava por Namor Monderline Cicorone, eu sei que não tinha necessidade de uma instituição. Porque eu falava tudo direitinho: “Eu vou pegar tal ônibus, eu vou lá pra Niterói; eu vou tomar o 434, eu vou lá pro Botafogo.” Quer dizer que era um cara integrado à sociedade, só que pra eles eu era um mendigo, não era um doente mental. Mas um mendigo diferente, cheio de platina na boca, falando um português que nem eles mesmos falavam, os caras ficavam assustados, falavam: “Pô, o que esse cara está fazendo na rua? Esse cara não é da rua, aconteceu alguma coisa com ele, está perdido.”
A instituição de lá era a Leão XIII, que arrastava o pessoal da rua. A polícia arrastava pro Leão XIII, mas eu era amigo da polícia… Tinha muita gente na rua, no Rio de Janeiro.
Eu fiquei lá quatro meses. Agora, o choque foi aqui, né, quando eu fui me deparar com a minha mãe, com os meus irmãos, com a minha cidade. Houve uma confusão. Eu comecei a ficar confuso. Tinha de assimilar um novo mundo que eu não conhecia. Só que tinha de assimilar esse mundo como Carlos Alberto, e não como Namor Monderline. Foi aí que eu precisei do tratamento, tá entendendo? Porque, se tivesse acontecido o que eu tinha premeditado como Namor Monderline, eu agora estava no Rio de Janeiro. O que eu premeditei era o seguinte: eu ia passar por Santos, ver se tinha família, dar um alô e voltar para o Rio. Pelos meus meios: carona, táxi, ônibus… mas não foi o que sucedeu. O plano ficou vazado. Quando eu cheguei aqui dei de cara comigo mesmo, com o Carlos Alberto Pereira. Foi quando houve o choque, houve a confusão, e eu precisei tomar remédio. Estava muito estressado da viagem, eu precisei descansar um pouquinho mais lá no hospital. Nessa ocasião me encaminharam pro Guilherme Álvaro, e depois pro Centro de Convivência, lá no Anchieta. O papo é o seguinte: os caras têm uma outra idéia do que é a doença mental. A doença mental é o cara mudar de comportamento, mas ele muda como se fosse uma outra pessoa. De vez em quando eu converso com algum profissional, eles vão pra lá, vão pra cá, tentando dizer “não, não é assim, Carlos, a realidade é assim”. Eu falo “não, não é bem assim”.
O que eu quero dizer é o seguinte: quando eu era Namor Monderline Cicorone, eu ia chamar isso aqui de gravador. No conceito deles, não. Pra eles, o Namor Monderline não era uma pessoa, não era um cidadão, enquanto na realidade o Namor Monderline era um cidadão. Só que era pobre demais, era um mendigo, estava na rua. Porque no Rio de Janeiro eu já estava arrumando emprego, ia tirar a minha documentação como Namor Monderline Cicorone e ia ficar lá como uma outra pessoa. Porque, daqui pra nós, o Rio de Janeiro é perto, mas do Rio pra cá, aqui é longe. O Rio de Janeiro é um país, e São Paulo funciona como um outro país. Se tu falar “Santos” pro carioca, onde eu passei, ele não sabe nem o que é Santos, porque é longe pra cacete, segundo a cabeça deles. E segundo a minha cabeça também.
Os doutores querem dizer que o Carlos Alberto tem responsabilidade, tem boas maneiras, tem bom vocabulário, tem profissão, e o Namor não tem. Eu nem questionei. Faz pouco tempo que me falaram isso. Eu não falei nada. Se eu falar que o Namor Monderline estava sendo convidado por um cidadão para ter uma profissão de mecânico, aí é que me botam na gaiola.
Tinha um cara lá que queria me ensinar a ser mecânico. Um outro queria que eu trabalhasse na padaria. Eu paquerava uma menina, o pessoal queria que eu namorasse a menina, lá no Morro do Livramento, não sei se vocês já ouviram falar. Quer dizer que eu era um cara, um cidadão. O carioca não faz como o santista, ele não faz como o médico, como talvez um psicólogo, você é doente. Ele te trata como gente, tá entendendo? Se tu cair, no Rio de Janeiro, e sofrer um corte, ficar inconsciente, vêm dez, vinte cariocas e te levam pro médico. Não é como aqui, que a gente tem medo, quando a gente não sabe quem é, muitas vezes passa direto, vai e faz um telefonema.
Então eu acho que no meu caso eles estão equivocados em dizer que o Namor Monderline não tem responsabilidade. Como que o Namor Monderline não tinha responsabilidade? Não roubava, não dormia perto de banco, se dava bem com a polícia, porque ele achava que tinha que se dar bem com a polícia, porque ele era um cara que estava na rua, à mercê de muitas coisas. Além de respeitar a polícia, precisava de proteção contra os outros marginais que andavam na rua. Não é todo mendigo que é um cara legal, tá compreendendo?
Os médicos falam que todo mundo tem seu grau de anormalidade. Eu falei: “Então, é eles que tratam o doente mental, muitas vezes eles são os loucos.” Que nem o doutor chegou e falou assim: “Nossa, tem tantos nomes para se dar para os doentes mentais, eu não sei como se chama um doente mental.” Eu ia falar assim pra ele: “Doutor, chama o doente mental pelo nome.” Por quê? Porque o psiquiatra, ou o psicólogo, olha para o doente mental e parece que o doente mental é um E.T. ou coisa parecida com isso, o que não é verdade. O doente mental é a pessoa. Como no caso em que me disseram que eu sou psicótico, “Fala, psicótico”. O que é que eu vou falar pra essa pessoa?
Olha, uma vez, um cara, num programa de televisão, me falou assim: “Por que é que você está todo sério, meu? Vai firme, trata de ser louco.” Tu vê a loucura do cara. Eu olhei pra ele – estava no “Sem censura”, lá no Rio de Janeiro, o programa da Márcia Peltier, na TV, eu olhei pra cara dele, bicho, ele gelou. Eu abaixei a cabeça. Não consegui responder. Pô, o cara sabe que eu sou o Marcelo Bruno, um locutor de rádio, vem falar pra mim ser louco…
Não tem louco, a loucura é uma ficção. Você pode perguntar pra esses caras aí que já tiveram uma desestruturação como pessoa. Porque a mente não existe, existe a pessoa. Agora, o cérebro existe, e a facção mente existe. Mas quem desestrutura não é bem a mente. Falar “doente mental” é como se tivesse alguma coisa ali, entendeu, que te regesse. Não é assim. É a pessoa que pega a estrutura. Por exemplo, você sai da sala pra cozinha, você ia tomar um uísque, ia pegar no barzinho, seja lá onde é o teu barzinho. Você sai, e fala: “Pô, o que é que eu vim fazer aqui?” Não sei se já aconteceu isso com vocês. Mas isso é a tua normalidade, é assim que ficou o louco, o famoso louco. Ele perde isso, mas ele fica com uma coisa constante, entendeu, é uma coisa após outra, ele não consegue se achar. Quando tem um cara como eu, que gosta de ir pela tangente, o cara se recupera, porque ele sabe que aquele eu antigo ele perdeu, é uma estrutura antiga.
Hoje eu me chamo de Carlos Alberto, mas também sou o Namor Monderline, também sou o Pereira, também sou o Patola. São todas as etapas da minha vida, como no caso bebê, criança, púbere e agora um homem. Quando você entende as várias fases da tua vida, você não fica travado, ou melhor, o louco não fica travado, ele fala: “Não, eu me desenvolvi um pouquinho mais, aí eu mudei, e tô sabendo que mudei. Eu perdi certos valores, mas tem outros valores idênticos que eu vou conquistar, mas com a minha nova personalidade, porque todo mundo dorme com uma personalidade, à noite, e acorda de manhã com outra.” Ou é o mesmo, todo o dia? Não, o cara acorda outro. Você nunca é o mesmo, a cada manhã. Você sempre é um outro cara, porque se não você ficaria louco. Ficaria paralisado.
O Carlos Alberto adoeceu em São Vicente e se tratou em São Vicente. Quando foi 3 anos depois, que eu queria a minha profissão de volta, os meus conhecimentos, eu percebi que não era por aí o caminho. Aí eu falei pra mim mesmo, conscientemente: “É o seguinte: esse papo aí de recuperar todos os conhecimentos, sentimentos e coisas parecidas, não tá dando certo. Eu vou é começar minha vida por um outro lado. Foi aí que eu falei que eu vou jogar esse Carlos Alberto antigo no lixo, e vou sair como Pereira.” Mas vê se vocês me entendem: o Patola é o Pereira. Só que o Pereira se esqueceu do passado, e isso aí durou 8 anos.
Eu tinha 21 quando eu adoeci. Foi presente de aniversário. Agora eu tenho 29 anos. Durante esse tempo deram diversos nomes pra minha doença. Esquizofrênico de ordem… como é que é… catatônico-hebefrênico. Um deu esse nome pra mim. O mais sensato, mesmo, falou assim, pra mim: “Carlinhos, (ele me chamava de Carlinhos) vai jogar bola, vai namorar… como é que tu tá? Tá nervoso?”. “Tô” “Então toma esse remedinho, tu vai jogar tua bola, tu vai dar uns beijinhos por aí que tu sara.” Era o que ele falava pra mim, era o cara mais sensato. Por que não tem jeito de você engatar a marcha à ré e voltar ao que você era antes. Não tem jeito.
Uma vez uma doutora me chamou de neurótico. Eu dei risada. Depois falou que eu era psicótico. Eu dei risada. Eu falei: “Eu acho que ela não conhece a psicose, porque se ela conhecesse a psicose, ela não me chamaria de psicótico.” Uma vez eu perguntei pra ela: “Quem que sabe de loucura aqui, eu ou você? Quem que é o louco aqui, eu ou você?” “Não, não é por aí que eu estou dizendo”. “Mas é por aqui que eu estou andando.” Falei: “O médico aqui sou eu, porque sou eu que reclamo… os sintomas quem dá sou eu…” “É, mas se você não tivesse um médico, como é que você seria?” “Eu seria o Namor Monderline lá no Rio de Janeiro, já empregado, com a barba feita e o cabelo cortado. Tá entendendo como é que é? Os caras querem você ontem, mas não dá, não dá pra você ser o cara do passado. A vida, a pessoa, ela evolui a cada momento. Quando você terminar esse cigarro, você nunca vai dizer assim: “Olha, vou fumar o mesmo cigarro do jeito que eu fumei ontem” Isso tudo é palavra simbólica. Eu falo isso pra eles.
Durante todo esse tempo eu não tive eletrochoque nem confinamento. O que é que eu tinha pra que isso acontecesse? Eu não tinha nada. O cara olhava pra minha cara e eu não tinha nada. Quando eu falava: “Olha, eu estou esquecido, a minha mente está vazia”, o cara entendia que a minha mente estava vazia, por que ele percebia. A mente vazia que eu quero te dizer é assim, pô, se lembrar, sabe, de que tipo de poesia eu gostava, que tipo de poesia eu fazia, me lembrar da corrente alternada, da corrente contínua, da eletrônica, entendeu? De como montar os circuitos que eu fazia, como fazer de novo esse tipo de microfone. Eu chegava pra ele e falava: “Olha, eu estou com a minha mente vazia, eu peguei e esqueci.” Ele falava assim: “Olha, não tem problema, continua a viver.”
Nesse estado de você não conseguir se lembrar, você vai adquirindo novos conhecimentos, novos sentimentos, novas visões da vida, novo esporte para praticar, muda a tua capacidade atual. Eu demorei pra entender o que estava me acontecendo. Não sei se está dando pra entender, mas tudo o que há em mim é meu mesmo. Não importa se eu esqueci alguma coisa, mas ela continua dentro de mim. Vem de uma maneira inconsciente. Como no caso da poesia. O Carlos Alberto gostava do Manuel Bandeira, de um Carlos Drummond de Andrade, era até chamado de “bicha louca”, porque segundo muita gente o Drummond escreve pra mulher, né? E eu lia muito Drummond. A Cecília Meirelles… e do que eu gosto agora? Do mesmo Drummond de Andrade, do mesmo Manuel Bandeira, da Cecília Meireles. Mas eu gosto de uma outra maneira.
Suponhamos que eu fosse você, desde o zero aos vinte anos. Quando deu a doença, eu virei esse cara aqui. Eu tentei voltar a ser você — que era eu mesmo. Mas não dá. Você entendeu como é que é? É uma outra pessoa. Uma vez um grande psiquiatra falou assim pra mim: “Carlos, aconteceu isso com você. A mente represou a tua personalidade original e ela te programou uma outra personalidade. Então a doença mental não existe. Porque a mente faz assim, ela trava uma coisa mas te dá outra de presente.” A partir do momento em que o cara vai se acalmando, – como no caso, eu fui me acalmando – hoje eu falo de corrente contínua, de alternada, mas se você me perguntasse isso há 8 anos atrás, eu ia te dizer: “Mas eu nunca estudei esse troço!” Ta tudo contido em mim, só que a mente guarda. Ela segrega. Aí, quando você ouve o psiquiatra falando: “Não, você tem de ser como você era”, você fala “não, tenho de ser como eu sou”.
Ele não consegue entender que eu sempre fui eu, embora eu tenha perdido vários valores. É como um ricaço. Ele tem dez empregos. Ele perdeu 9, mas fica com um. Mas aquele um não era dele mesmo? A mesma coisa eu. Perdi muitos valores da minha personalidade. Sobraram alguns. Mas os que eu mais queria ainda estão segregados na mente. Por que os loucos ainda não conseguiram sair da loucura? Porque os caras (os psiquiatras e psicólogos) não tratam os caras por nome. Você chamando de psicótico, o cara deixa de ser o André para ser psicótico. O outro ele chama de esquizofrênico. O cara deixa de ser o Luis para ser esquizofrênico. É isso o que acontece com o louco. Ele mete na cabeça que ele é louco, e ele pára ali. Então o psiquiatra, o psicólogo, sei lá, dá uma nova norma de vida, que o cara acompanha. E eu nunca acompanhei.
Ninguém volta a ser normal. E agora não sou normal. Uma vez, conversando com um doutor, arrocha daqui, arrocha dali, ele percebeu: “Mas pô, o cara tem o conhecimento que eu tenho.” E eu: “Ah é? A psiquiatria vem de onde? Vem da terra, você pra ser psiquiatra passou por um monte de loucos. Se eles não contassem o que estava acontecendo, vocês nunca saberiam.” Ele olhou pra minha cara e falou: “É.” Não dá pra conversar comigo, entende, nos termos que ele quer colocar: “Você é doente.” “Mas como é que eu sou doente, se você está me pregando que eu sou o Carlos Alberto Pereira?” Aí entra em choque. Se eu sou o Carlos Alberto Pereira, eu não sou doente, você entende? Quando à gente faz alguma reclamação, como paciente, eles não entendem que tipo de reclamação você está fazendo. Por exemplo, se eu digo: “Estou tenso”, eles pensam que você quer dar murro na cabeça de todo mundo. Mas não é, é um estado emocional muito forte, que te proíbe de ficar pensando numa boa, relax. É isso que é tensão. E ele pensa que você está violento. Então te dá calmante. Você pega um outro cara, que é psicoterapeuta de consultório, ele fala: “Não, cara, fica relax.”
Então, é a linha de tratamento que muitas vezes é dada de uma maneira errônea. Quando pega uma pessoa que tem pia fé no psiquiatra, o cara engole tudo aquilo. Mas ele fica perdido. Quando pega um cara como eu, eu só absorvo o que é o melhor. Porque eu fico com o meu senso crítico todo aguçado. Eu fico prestando atenção no que o psiquiatra está falando pra mim, porque eu preciso saber o que é que tem de ser corrigido e o que não precisa ser corrigido.
Como no caso Freud, pô, e na revista de vocês. Dostoiévski versus Freud. O Freud xingava Dostoiévski. Agora, Dostoiévski já era o pai da psicanálise. Agora eu viro pra mim e falo: “Afinal, quem é o pai da psicanálise? É Freud ou Dostoiévski?” Aí você olha, é o ponto de vista de uma pessoa. Você entende como é que é? Onde eu já respondo a minha pergunta: por esse cara aqui, o Dostoiévski é o pai da psicanálise. Mas por um outro cara, é o Freud. Eu vou entrar nessa briga? Só se eu servir de juiz. Então, não estou a fim de servir de juiz, também não quero saber nem de um nem de outro, entendeu? Por que outros pacientes, hoje em dia, e eu, estão saindo do bueiro? Porque o tipo de tratamento que os caras têm é o natural. Qual é? De gente, pô. Tu vai tratar um doente colocado numa cadeira e dizer “Conta tua vida”? O cara vai contar a vida dele segundo o modo de ver dele, no ato, mas não como ela aconteceu realmente. Então há tanto choque que o próprio psiquiatra fica como que um cara não-sábio. Porque tem de se ter perspicácia. Quando uma pessoa chega pra nós e diz: “Olha, estou com tal problema”, você tem que ver o 360 graus da coisa: “Mas como aconteceu isso? E como é que você está agora? E o outro lado?” Aí você tem que pegar um aglomerado de todas as coisas, que é pra você, com jeito, falar: “Olha, na minha opinião, a coisa é assim. E você deve fazer isto, agora, o resto é com você.”
Os psicólogos novos precisam entender que as teorias do Freud quem compreendia bem era ele. Quando ele ler também um outro cara que fale sobre psicanálise, é pra ele compreender que, pro cara, a opinião dele era aquela. Ele precisa firmar a opinião dele. Ser um novo Freud, segundo aquilo que ele tem. Porque se ele seguir cegamente o caminho do Freud, ou de outros caras grandes em psicanálise, ele simplesmente vai se transformar num doente mental. É um doente mental. Desculpa. Ele é um doente mental. Falando por quem já foi – eu já fui um doente mental, e eu sei o que é ser doente mental.
Tem muito médico por aí, psiquiatra, que é doente mental. Só segura a barra, como eu. Nem conta que está tomando um Haldolzinho de vez em quando. Uma bolinha, sei lá, meu, porque o mundo é doido. Se tu chegar e falar assim pra mim: “Eu sou normal”, eu sei o que você está falando. Agora, fala prum médico assim: “Eu sou normal”, ele fala: “Não, tsk, tsk, tsk, você é anormal”.
O doente mental tem uma coisinha só. Ele fica bravo. Ele engole tanto sapo na vida e no ambiente, que ele fica bravo. Na hora de ele soltar isso, em vez de um por um, ele solta de uma vez só. Segura… é por isso que os caras se perdem. Vê eu. O que é que eu era? Eletrônico de primeira linha. Eu tinha uma capacidade intelectual fora do comum. Li pilhas de revistas, pilhas de livros. Aí vem um psiquiatra e diz assim pra mim: “Olha, você adoeceu por que você quis.” Aí eu olho pra cara dele, aponto pra cabeça e falo: “Pô, isso aqui não se degenera.” Aonde eles calam a boquinha. Porque eu nunca quis adoecer. Pô, eu era iniciado em vários idiomas, tinha a minha profissão segura, tu acha que eu vou, como certos caras ligados na rádio aí falam, “a pessoa é quem adoece”?
Eu fiquei p: da vida, cara, quando fui no Teatro do TUCA, e me deram Artaud pra ler. O princípio da fala dele é assim: “O louco é uma pessoa que quis enlouquecer.” Eu fiquei tão invocado, aquele dia, que eu falei: “Olha, isso aqui já foi há muito tempo. Se vocês quiserem acreditar, isso é com vocês.” Foi um desabafo, mesmo. Ele estava naquele tipo de coisa de dizer que o louco quer falar verdades insuportáveis. Mas que verdades insuportáveis são essas? A gente conhece, são todas as verdades que tem no mundo, você entendeu? Aí tu pega um cara que está começando agora, se ele saca assim “Pô, o Carlos Alberto está fazendo psicoterapia”, legal. E se me tratar naturalmente, ele está fazendo a verdadeira psicologia, a verdadeira psicoterapia. Mas quando ele começa a voar, “Não, isso é assim, mas isso é assado”, que ele começa a filosofar, pode dar Haldol pro cara, que o cara já está começando a ficar meio tantan, tá entendendo?
Uma pessoa, ela é tão grande, em tantas coisas, ela é tão profunda, tão complexa, que, não é assim:” ‘X’ coisa vale pra você, ‘Y’ coisa vale pra você.” Escuta o que aconteceu uma vez comigo. Eu estava tomando 8 mg. de Akineton. E era pra mim tomar quatro. Tava cortando todo o efeito do Haldol, e eu tava voltando a ser o Namor Monderline de novo, cara. Aí eu peguei, fui pra médica e disse: “Doutora, eu estou me esquecendo de Santos, aquele papo do Rio está voltando todo na minha cabeça. “Ela falou: “O que é que está acontecendo, você está tomando os remédios direitinho?” Eu falei: “Os remédios, direitinho? A química? Tô, tô me enchendo de química, as bolinhas… tá fazendo efeito.” “Mas o que é que está acontecendo?” Eu falei pra ela a dosagem do remédio que eu estava tomando. Ela falou assim: “É por aí.” Agora tu vê a preocupação dela. Ela falou pra mim que se acontecesse dos pensamentos do Rio de Janeiro voltarem, era pra falar pra ela. Porque se eu virasse o Namor Monderline Cicorone, eu teria que sofrer uma internação. Eu falei: “Duvido que se ela der de cara com o Namor Monderline – eu sei imitar o Namor, não é, ficou no banco de memória – eu duvido que ela consiga internar o Namor.” Ela vai tomar uma cadeia do cacete, se ela fizer isso. Porque o Namor é uma pessoa. Você – você não, nós, até eu – não acha vestígio de loucura. O máximo que ela poderia fazer era dar remédio e manter o Namor Monderline na rua. Que é pra aquele papo do neurônio, né, neurônio aqui, neurônio ali, e vai se juntar… a barreira é o remédio. Ela contou isso pra mim.
Mas eu pagava pra ver, meu, ela contra o Namor. Por que é um cara, bicho…é tudo o que eu li, entendeu? Fala de Manoel Bandeira, fala de Cecília Meirelles, fala inglês, fala francês, fala espanhol, você tá entendendo? Eu duvido que ela entenda esse cara.
A minha vida eu fui à igreja, eu era parte das Testemunhas de Jeová. E lá sempre teve teatro, palestra sobre sexo, sobre psicologia, psiquiatria, sociologia, política. Eu era sempre destacado porque lá tinha uma boa didática, a didática que é pesquisada lá no Brooklin — o material vem dos Estados Unidos – então eu nunca tive muito contato com a academia brasileira. Eu sempre tive muito contato com a academia norte-americana. Então isso aí em fez um cara aberto. Me pediam pra fazer um negócio, eu ia lá e fazia. Porque segundo a nossa regra, nós somos realistas.
Agora eu abandonei a religião. Por exemplo, eu nunca vou questionar se isso aqui é uma caneta ou não, porque eu já sei que o padrão designado é uma caneta. “O que é que é isso?” o eu vou responder no ato, sem ficar vacilando: “É uma caneta, é o tubo de cola, é o grampeado tá entendendo?“ Quando eu fui chamado para a Rádio Tantan, eu tive facilidade de lidar com um microfone, porque eu sei que locutor é o falador. E ele tem que falar bonitinho. Porque se ele não falar bonitinho, o público desliga o rádio. Então, todas as idéias já ficam na minha mente, do que é a coisa e como ela é. E como se fazer. De forma se que tem uma naturalidade, entendeu? Tem o meu jeito de fazer. Mas eu sei o que as pessoas querem lá fora, eu conheço a capital santista. Eu não sei se está dando pra entender.
A mente, a minha mente, ela infelizmente está represando a minha personalidade. Ela está com defeito, entendeu? O cérebro não está bombeando a química necessária. Eu estou com um desnível de química cerebral. Se a minha química é pra chegar aqui, num determinado nível, ela não está chegando, ela só está chegando até aqui, num nível mais baixo. O remédio faz com que ela chegue aqui, no nível anterior. Aí eu fico o Carlos Alberto. Quando pára de tomar remédio, ela cai. Aonde a mente abandona – a mente simbólica – o cérebro, ele me tira a personalidade natural, e eu fico com essa aqui, abonada por ele. Mas como eu tenho muitos conhecimentos, sai a consciência de Carlos Alberto, e o cara que vem depois de mim fica com os meus conhecimentos. São vastos. Era muita cultura, bicho. Testemunha de Jeová – não sei se você já ouviu – é “Sentinela”, é “Despertar”, é “Book”. Então era muita coisa, né.
O primeiro médico me disse: “É, você teve sorte, você teve um distúrbio positivo.” Não quer dizer que… ser Namor Monderline Cicorone não me dá medo. Uma, porque o meu treinamento todo era de guerra, sou filho de guerreiro. Pra nós, dormir ali na sarjeta é uma boa cama. Fui feito pra aceitar a coisa que vem de bom e a coisa que vem de ruim.
Sou filho de cara que foi na guerra. A gente dorme em qualquer lugar, porque a gente sabe que a batalha, quem vai vencer somos nós. O pessoal aí fora acha bonitinho, otimista. Eu digo: “Que otimista nada, guerreiro mesmo.” Quando vem a porrada, a gente sai pra porrada também. Os médicos não gostam disso. Eles tiram a minha iniciativa. Quando você manifesta qualquer grau de poder a sociedade tem medo, porque isso é mudança. E eu sempre fui revolucionário. A minha geração é assim, a do pessoal que nasceu em 60.
O psiquiatra quer manter padrão, eu acho. Não, vamos lá. O psiquiatra não, alguns psiquiatras. Mas eles ficam tranquilos, porque, na cabeça deles, eles não vão conseguir trabalhar com o Carlos Alberto. Então eles catam o Narnor Monderline, porque eles têm autoridade. Pegam o Namor, põem no hospital psiquiátrico, dão medicamento pro cara, eu volto a reagir, volta o Carlos Alberto, eles tiram do hospital psiquiátrico, da internação, começam a trabalhar comigo. Eu não vou falar nada, entendeu, que eu não gosto de muita briga, mas eu falei: “Duvido que ela interne o Namor.” Eu não sei o amanhã, entende, hoje eu estou o Carlos Alberto, você vê, eu já tive duas desestruturações, amanhã eu não vou arriscar a dizer “olha, eu vou estar assim”, porque no meu caso as coisas já não se mostraram assim, lineares. Mas eu pagava pra ver, pagava pra ver essa briga.
As coisas não é como a gente pensa. A gente tem uma idéia de como é as coisas. Mas as coisas são como elas realmente são. A gente só tem um reflexo de tudo. Então eu estou achando que, se os meninos novos, agora, psicólogos, vierem humildes, bem humildes mesmo, no sentido de falarem: “Pô, o cara está doente segundo o meu ponto de vista. Agora, vamos ouvir o cara. Vamos ver se o cara está doente.” Se deixar o cara andar, o cara vai longe. É que nem um amigo meu, daqui. Doze anos de internação. Todo o mundo dizendo: “Ele é louco, ele é louco”, até o dia em que você vê o cara. Ele está se soltando. A cada dia que passa ele está se soltando. O cara faz cada amizade aí fora que tu não acredita, melhor do que eu, que você, entende, que muita gente aí que está se dando por normal. Por quê? Largaram o cara. Tiraram as algemas.
Eu quero dizer pro pessoal que lê a Artéria o seguinte: Pra ler a revista, respeitando os pontos de afirmação, os pontos de interrogação e exclamação, porque este é o jeito correto de se ler, nunca tentando distorcer a mensagem recebida, nunca trocando as palavras de uma mensagem passada. E também, certo, mantendo sempre um coração vigoroso. Nunca deprimido, não tendo contato assim com certas malandragens aí que andam acontecendo, que distorce o raciocínio da pessoa, inibe a iniciativa, inibe a criação, a inventividade, e também, não é, procurar se relacionar mais com o seio da sociedade santista, ou a sociedade brasileira, se a pessoa tem uma capacidade melhor de grana, a sociedade humana, se o cara tem uma capacidade maior. Sempre procurar ficar ligado nisso, porque desses derivados aí vem a verdadeira felicidade, você tendo mil contatos, você tem idéias interessantes, contatos interessantes porque são novos pra você. Que nem aqui, né, estou conversando com vocês, é um outro papo, é uma outra cabeça. O Carlos Alberto que estava lá quando vocês chegaram já não é o mesmo aqui.
Eu acredito o seguinte. Eu sempre me dirigi. Nunca dei o luxo das pessoas dizerem assim pra mim: “Olha, eu fiz alguma coisa pra você”. Eu estou aqui no projeto Tantan. Acredito que eles fizeram muito, e estão fazendo muitas coisas pras pessoas que perderam as forças. No meu caso, eu tinha força pra batalhar. Se eu não tivesse o Anchieta, o Centro de Convivência, eu tenho muito conhecimento na cabeça pra me refazer, porque eu me refiz da primeira vez, entendeu? E me refazer dessa segunda vez não ia ser problema nenhum pra mim. Mas tem pessoas que têm essa fragilidade, ficam perdidas, necessitaram de ajudas, então eu acredito que o pessoal do Anchieta, esse pessoal que está trabalhando nesse novo episódio de tratamento aos doentes mentais e coisa parecida, que tem muito pra dar pras pessoas que estão precisando. Eu acho que o caminho é esse. Só espero que o orgulho não venha a derrubar tudo.