Celulares

Luiz A. G. Cancello

Moro em Santos, cidade praiana. Os ares marítimos têm uma estranha afinidade com a música. A cidade, costeira e quente, oferece cerveja gelada, água de coco, papos intermináveis, canções e violão. Pode-se ficar nas ruas até tarde da noite, deixando o som rolar solto. Minha natureza nunca foi muito afeita a tais boemias, gosto de uma vida mais regrada, mas o clima envolveu meu filho Mateus, que resolveu se dedicar à música. Tentei fazê-lo abraçar uma profissão mais tradicional e rentável, convidei-o para trabalhar comigo, mas não teve jeito:
— Eu nasci pra ser músico. Nunca seria contador.
Ontem, domingo, foi para São Paulo, tocar seu saxofone numa festa. Além de instrumentista quer se lançar como cantor e compositor. Mostrou-me algumas de suas músicas, gostei de todas, embora pai não seja um crítico confiável para julgar talento de filho. Deixou-me a tarefa de entregar um material gravado para sua produtora, aqui no litoral, na segunda-feira. Perguntei:
— Onde é essa empresa?
— Não é uma empresa, é uma amiga minha, que faz essas coisas.
Deu-me o celular da Carla.
— É gente boa, pai, você vai gostar dela.
Liguei na hora do almoço, em casa, ao meio-dia, um pouco antes de comer. Sentei-me na cabeceira da mesa. Tubi, meu cachorro, pousou o focinho no meu colo, com olhar pedinte. Arrancou-me um sorriso.
— Oi, tio. O Mateus me falou do senhor.
— Bom dia, tudo bem? Onde posso te entregar o disco?
— O quê?
— O CD
— Onde o senhor vai estar?
Não entendi. Onde eu vou estar? Agora? Daqui a pouco? Amanhã?
— Quando?
— Sei lá, hoje à noite, por exemplo.
Fiz um silêncio, fiquei desentendido. Como assim por exemplo?
— Vou trabalhar até as sete horas, depois posso entregar o CD para você. Vamos marcar uma hora e um lugar. Às sete e meia, onde?
— Não, tio, quando sair do trabalho me liga.
— Acho mais fácil marcar um lugar e uma hora.
— Não, me liga que a gente vai combinando.
Na beira da irritação, insisti em fazer as coisas à moda tradicional:
— Bom, eu ainda prefiro do outro jeito. Onde podemos nos encontrar, às sete e meia?
— Na boa, tio, liga quando estiver livre. Mais tarde eu vou a um show no SESC.
— A que horas é o show?
— Lá pelas nove e meia.
Lá pelas nove e meia deve ser algo próximo às dez horas. Quis combinar a entrega do CD lá pelas tantas horas, só para ver no que dava, mas não tive coragem.
— Posso te encontrar na porta do SESC às nove e quinze.
— É uma. Vamos ver. Me liga.
Não houve jeito de marcar um encontro. Coisa simples, um horário, um local, lá estaria eu. Confesso que almocei com algum desconforto. Tubi deitou-se ao lado da mesa. Cochilava, às vezes abria os olhos para ver se eu lhe dava alguma atenção. A presença dele me acalma.
Tenho um escritório de contabilidade. Volto para lá às duas horas. Agora queria fazer uma sesta, para depois me debruçar sobre impostos e planilhas. Meu serviço é previsível, exato, pontual. Por isso tenho uma clientela antiga e fiel, em geral pessoas de meia idade, comerciantes e profissionais liberais. Ainda me ligam, em geral, no telefone fixo. Alguns me enviam e-mails, outros mandam seus papéis por motoboys. É possível que eu não esteja acostumado a lidar com jovens. Onde iria encontrar a Carla? As imprecisões me incomodam. A que horas voltaria para casa? Ora, por certo não seria uma coisa demorada, a questão seria apenas entregar um pacote com o CD e as letras das músicas. Suponho que seja isto, dentro do pacote de papel pardo que me foi confiado. Deixei tudo bem à vista, junto à chave do carro, assim não esqueceria de levar o material para o escritório. Tubi chegou perto, elevou-se nas duas patas traseiras e cheirou cuidadosamente o pacote. Bom agouro, pensei, embora contrafeito com o impulso supersticioso.
Depois de um dia normal de trabalho, o último cliente saiu às sete e dez, além do horário habitual. Costumo controlar o tempo das reuniões, às sete já estou fechando a porta e apertando o botão do elevador. Desta vez, logo hoje, dia de entregar a encomenda de meu filho para a Carla, acabei saindo mais tarde. Devo ter ligado para ela às sete e quinze.
— Boa noite, Carla, é o pai do Mateus. Desculpe-me o atraso na ligação.
— Oi, tio, tudo certo, onde o senhor está?
— No escritório
— Onde fica seu escritório?
— Na avenida Ana Costa.
— Em que altura? Eu estou na Conselheiro Nébias. O senhor está de carro? A gente pode se encontrar no meio do caminho.
— Eu moro na Conselheiro Nébias.
— É mesmo, o Mateus me disse. Perto da praia, né? Estou por aqui. Onde fica seu prédio, mais ou menos? Posso esperar em frente à sua casa.
Meu prédio não fica mais ou menos em lugar nenhum, tem um número, mas eu já não tinha certeza se 8:30 teria algum significado para a Carla. Arrisquei um ponto de referência:
— Sabe o supermercado grande, o Carrefour? Em direção à praia tem uma loja de roupas e logo depois é o meu prédio.
— Acho que sei. Espero o senhor na porta. Meu carro é um Corsa azul.
Incrível, deu tudo certo. Tenho para mim que não marquei um encontro com a produtora, mas fomos nos encontrando, por assim dizer. Deve ser isso a tal computação em nuvem, a chuva vai se formando, uma hora há de cair. As operadoras de telefonia celular agradecem, é um jeito bem mais caro de fazer as coisas. Mas funciona, devo confessar.
Deixei meu carro na garagem, saí do prédio e fui convidado a entrar no Corsa. Carla é uma mulher de uns 30 anos, bonita e simpática. Se eu fosse mais moço e menos tímido arriscaria convidá-la para jantar, mais ou menos lá pelas horas avançadas. Deu-me um beijo, pegou o envelope e colocou o CD para tocar.
— Gostei bastante das músicas, adiantei.
O aparelho não funcionou.
— Esse meu som não está muito legal, preciso trocar. Em casa eu escuto.
Fiquei preocupado, perguntei se o problema podia ser do CD.
— Não esquenta, tio, esse bagulho aqui tá bichado.
— Se for do CD não se esqueça de me avisar.
Recebi em troca um sorriso compreensivo e desconcertante. Senti que era um velho preocupado e chato. Ainda quis fazer uma graça, não achei o jeito, agradeci e abri a porta do Corsa.
O Tubi estava na rua. Pago o faxineiro do prédio para levá-lo passear. Carla desceu do carro, que ficou estacionado em local não permitido, afagou o cachorro.
— O Mateus me falou do pet. Tem uma foto dele no facebook. Que lindo!
Missão cumprida, a moça deu-me outro beijo e foi-se embora. Peguei a coleira, dispensei o rapaz e dei uma volta na quadra com o cão, a passos lentos, na esperança de que a vida voltasse ao normal. Soprava um vento agradável, vindo da praia. Subi e passei um torpedo para meu filho: “Entreguei seu material para a Carla.” Resposta: “Legal. Vlw”
Jantei, vi o noticiário da TV, conferi algumas planilhas e fui para a cama. Tubi deitou-se no chão, ao meu lado, como de costume. Um de nós teve o sono agitado