Bululus

Luiz A G Cancello

Na casa de meus pais sempre houve descansos de talheres. Era uma haste de metal redonda e fina, talvez de prata (como se usava naquele tempo), sustentada por uma cruzeta de cada lado, feitas do mesmo material. Meu irmão, o pai e eu brincávamos de rolar os descansos na parte chata da lâmina da faca, controlando a inclinação, fazendo com que viajassem do cabo até a ponta, ida e volta, sem deixar cair. A mãe só olhava e se divertia. (Veja aqui um vídeo ilustrativo)
Chamávamos o objeto de “bululu”. Não sei de onde saiu a palavra, provavelmente algum de nós o chamou assim por puro acaso, emendando sons comuns dos balbucios de criança. O nome pegou e até hoje o usamos.
Depois do falecimento de meus pais, herdei apenas três bululus. Os outros, deviam ser oito ao todo, perderam-se nas tantas mudanças de casa e de cidade. Um dia, numa feira de antiguidades, deparei-me com descansos iguais aos meus. Sem perguntar o preço, comprei cinco e completei a coleção. Hoje tenho novamente oito bululus.
Não concebo a mesa posta para uma refeição sem os descansos de talheres. Onde poderiam ser pousados o garfo e a faca, com seus inevitáveis restos de comida, se não fossem os bululus? Há quem os apoie no prato, mas fica feio, desajeitado. Outros os largam mesmo na toalha, coisa pouco higiênica, mas os hábitos são estranhos e vários. Os guardanapos, principalmente se forem de papel, são o destino preferencial dos talheres usados. Mas é preciso convir que nenhuma dessas soluções é tão prática e elegante como a dos bululus.
Os restaurantes não usam esses objetos, pois seriam facilmente roubados, penso. Não sei se há descansos nos lugares mais chiques, há muito não os frequento. Nas casas dos meus amigos também não há bululus. Mesmo em jantares mais cerimoniosos, com guardanapos de pano, nunca os vi. Tenho vontade de perguntar o porquê da rejeição a artefatos tão úteis, mas temo melindrar os anfitriões.
Creio que os descansos foram esquecidos, por esses acasos históricos meio inexplicáveis. Saíram de moda e ninguém deu por isso. Imagino que, se uma dessas pessoas famosas que nos assolam na televisão e na internet aparecesse num restaurante gourmet usando bululus, muita gente iria adotar o costume de usar esse tipo tão racional de suporte.
Infelizmente não tenho espírito empreendedor. Mas sugiro àqueles que o tenham que façam uma campanha para ressuscitar os bululus. Contratem um youtuber top e mostrem o garoto num restaurante vegano da hora usando descanso para talheres. Um close, numa pausa da refeição, pousando suavemente o garfo e a faca no lugar adequado. O brilho da prata refletindo a luz do ambiente. Ele estende as mãos para a moça que está à sua frente na mesa. Ela apoia os talheres do mesmo modo. Os enamorados entrelaçam os dedos por um momento, depois voltam a comer. A câmera mostra os rostos sorridentes e apaixonados e corta para a toalha, limpa, sem nódoa, pura como o amor dos jovens. Fim.
Mas toda essa arenga comercial e utilitária esconde a questão principal. Volto àquela mesa da infância, a família reunida, a habilidade do pai e o assentimento da mãe, nossas tentativas de equilibrar o bululu, o vai e vem do objeto entre o cabo e a ponta da faca. Vejo que ali aprendíamos a atenção e a paciência, a tarefa conjunta, o encanto das coisas simples. Mesmo que, tempos depois, a faca às vezes nos apresentasse o fio da lâmina, conseguimos nos sair bem, sem grandes cortes.
Só hoje, depois de tantas idas e vindas, foi-me dada a graça de entender o culto ao bululu.