Luiz A G Cancello
Há poucos dias vi uma nota de falecimento no Facebook. Mariema Faro não estava mais neste plano. O nome trouxe à mente a história que vou contar.
Fui à Europa pela primeira vez no final dos anos 80. Queria ver tudo, desde as atrações comuns até os becos mais inusitados de Lisboa, Madrid e Paris, gastando a sola do tênis até doerem os pés. Tinha também um objetivo bem peculiar, ligado à cultura pop. Explico.
Eu tinha visto um dos filmes do 007, na época estrelado por Sean Connery. Não me lembro do título, mas uma cena ficou na minha cabeça. O agente de Sua Majestade estava envolvido numa de suas investigações habituais, quando foi chamado para desvendar um assassinato. No local do crime percebeu que havia, na lapela do paletó do cadáver, uma pequena mancha. Raspou o conteúdo com a unha e levou-o aos lábios. Concluiu: era bouillabaise de Marselha. Tinha uma maravilhosa e precisa percepção gustativa, como convém a todo detetive de primeira linha.
Informei-me sobre esse prato, numa época em que o Google não existia. Era uma caldeirada de peixes, bem temperada. Soube depois que era uma espécie de feijoada de frutos do mar. Os escravos cozinhavam o alimento que sobrava do repasto de seus senhores. Com o tempo, assim como sua prima tropical, a gororoba foi refinada e passou a ser comida elegante.
Quando estava em Paris resolvi pegar o trem de alta velocidade até Marselha, para experimentar a tal iguaria. Chegando na cidade percorremos os restaurantes. Eu estava com a Angela, então minha companheira. Nos lugares mais finos o preço era muito caro. Estávamos no Velho Continente com dinheiro contado, havia uma verba para gastar por dia, não podíamos nos dar ao luxo de exceder o combinado. Fomos baixando o nível dos restaurantes, em direção ao cais, até achar um do tamanho do nosso bolso. Enfim, chegamos ao lugar possível. Escolhemos a mesa e pedimos uma bouillabaise. Estava sofrível. Pagamos com aquela cara de decepção, mas depois rimos bastante. Tantos quilômetros para morrer no porto.
Muito anos depois, estávamos em Paraty, onde alugávamos a casa de uma amiga santista, pintora e escritora, grande contadora de casos. E foi ela, Beatriz Rota-Rossi, que um dia nos fez um convite inesperado:
– Cancello, querem comer uma bouillabaise na casa da Maria (e aqui há um nome que não recordo bem: Maria Pia? O seria a Mariema, agora não mais entre nós?)
Fiquei muito feliz com o convite. A França é aqui, vamos ver o que o destino nos traz. A comida estava deliciosa. Lembro que havia uma torrada no fundo do prato. Não sei se era a receita original estilizada ou uma invenção da cozinheira, mas pouco importa. Valeu a viagem, as duas viagens.
A Inteligência Artificial me informa que o filme era “007 contra a Chantagem Atômica”. Penso em voltar a assistir, mas hesito. A memória é traiçoeira e inventiva. Vai saber se a cena de que me recordo era fiel ao roteiro. E se não for, fiz todo o percurso desta crônica em cima de um engano?
Não vou rever coisa alguma. Fico com a minha história da bouillabaise. Tem um gosto especial.
O texto acabaria aqui e teria outro desfecho, não fosse a troca de mensagens que tive com a Beatriz. Perguntei a ela o nome da cozinheira. Obtive uma resposta deliciosa, um áudio falando da Mariema (era ela!), contando o preparo paciente e meticuloso da bouillabaise. Minha amiga tem o dom da palavra, sabe ornar a narrativa com detalhes interessantes e pertinentes.
“Mariema, tudo junto. Mariema Faro”. Grande amiga dela, faleceu recentemente, me disse. Era uma cozinheira fantástica. Nasceu em família rica. Viajava à França. Foi ensinada por um cozinheiro de Marselha. Diferente da feijoada, não eram os escravos, mas os trabalhadores mais pobres e pescadores os donos da receita. Beatriz conta o ritual do preparo: uma cebola bonita, branca, no fundo da panela, era coberta de cravos, “fica como porco-espinho”. Ela adorava estar com Mariema nesse ritual. Por cima de tudo era derramada a calda em círculos concêntricos. O peixe era colocado depois.
Havia mesmo uma torrada no fundo prato. Os navios franceses e italianos levavam uma galheta para as viagens, uma espécie de biscoito muito duro. No Brasil não se vende, na Argentina se chama galleta marinera. Era feita para durar meses, durante a época do descobrimento e posteriores, quando não havia refrigeração a bordo. Os marinheiros faziam a bouillabaise, colocavam a galheta no fundo da terrina, e serviam o caldo bem quente, sem tocar nela. A galheta ia amolecendo e no final a comiam, sentindo o gosto do prato inteiro.
Relendo o texto, vejo que tudo começou no filme do 007, de 1965. Devo ter ido a cinema ver (mais uma vez) o detetive no final dessa década. Fui à Europa final dos anos 1980. Não sei quando aconteceu o episódio de Paraty, mas creio ter ido à casa de Mariema perto de 1990. Fiquei com a história na cabeça, contei-a diversas vezes para amigos e parentes. Só agora, no ano de 2025, resolvi escrever sobre a bouillabaise e destrinchar as lacunas com minha amiga Beatriz Rota-Rossi. Passaram-se 45 anos. Ainda sinto seu sabor e Mariema vive.