
Luiz A. G. Cancello
Coloquei meu filho numa escola de futebol, aquele esporte bretão que aprendíamos na praia e nos terrenos desocupados da cidade. A “escola” está instalada num clube de que somos sócios há algum tempo. Ainda não conheço a intimidade do menino com a redonda, mas estou esperançoso; afinal, quem sabe terei uma velhice sossegada, devidamente amparada pelas somas de ienes ou de marcos que ele receberá, ao ser contratado para jogar em outros cantos do planeta.
No clube, pensava eu, meu filho está a salvo de assaltos e más companhias, coisas da praia e dos terrenos baldios desta época. Junto de “gente como a gente” os perigos passam ao largo. Ele pode praticar seu esporte, atividade fundamental para um desenvolvimento holístico, como recomendam psicólogos e pedagogos. O “mens sana in corpore sano” nunca saiu de moda, apesar das dificuldades de seguir a primeira parte do ditado.
Num domingo em que ele voltou do clube eu estava na porta de casa. Perguntei como foi o treino, se estava gostando das aulas, como funcionava o aprendizado, essas perguntas de pai. Começamos a conversar. Aos poucos fui percebendo que o “professor” não ensinava coisa alguma, apenas mandava a garotada jogar. Quando expus meu ponto de vista o menino fez logo uma observação, defendendo a seriedade das aulas: “Mas antes da partida, pai, tem uma ginástica muito dura.”
— E como é essa ginástica?
O pequeno atleta respondeu-me que o instrutor mandava os jogadores fazerem quinhentas flexões de braço antes do treino. “Mas isso é impossível”, retruquei, disposto a fazer ali mesmo um discurso sobre os limites do corpo humano. Não deu tempo:
— Sabe, pai, a gente só finge que faz.
— E o professor não percebe?
— É, de vez em quando ele pega um aluno muito na moleza.
Não entendi bem o que o menino queria dizer com “muito na moleza”, mas quis saber qual seria a punição para o delito.
— Ah, se o professor pega, o folgado passa pelo corredor da morte.
Corredor da morte ou corredor polonês, se eu bem me lembrava do termo, era uma brincadeira muito violenta. A vítima tinha de passar entre duas fileiras de colegas, levando tapas nas costas. Manifestei a minha preocupação:
— Mas isso machuca, filho!
— Não, é de mentirinha, é pro pessoal bater fraco.
— E se alguém bater forte?
— Aí o cara que exagerou passa duas vezes pelo corredor.
Alguém chamou o menino e ele correu para dentro de casa. Isto foi providencial, pois eu estava sem saber o que dizer. A perversidade da situação havia me deixado perplexo. Passado o primeiro choque, no entanto, percebi que os fatos acontecidos no clube tinham uma lógica assustadoramente clara. A sequência pode ser descrita passo a passo:
1 – O chefe dá uma ordem impossível de ser cumprida. O chefe sabe que o cumprimento da ordem é impossível.
2 – O subordinado finge que cumpre a ordem, enquanto o chefe finge que acha plausível o cumprimento da ordem.
3 – Para manter a autoridade e o fingimento, coisas que aqui se confundem, o chefe precisa punir um subordinado que não está fingindo bem o cumprimento da ordem. (Supostamente para manter o espírito de grupo, ele delega a punição aos colegas do (in)subordinado.)
4 – A punição precisa ser fingida, caso contrário a situação pode ficar séria. Mas seriedade é tudo o que não pode aparecer neste jogo.
5 – O subordinado que punir seu colega seriamente é punido meio seriamente. Isto funciona como ameaça de uma punição séria mesmo, para que ninguém desautorize a mentira coletiva.
Essa cadeia de mandos e desmandos é bem conhecida. Em lugar de chefe e subordinado pode-se colocar professor e aluno, pai e filho, fiscal e fiscalizado ou governante e governado. A sequência permanece válida. É terrível constatar que tudo isso aparece aos participantes da trama como absolutamente “natural”, palavra enganosa, frequentemente empregada por prisioneiros que já não enxergam as grades da própria cela.
Alguns poucos teimosamente resistem. Em todos os campos há quem não entre facilmente no jogo da insanidade coletiva. “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, disse alguém que entendia dessas coisas. Mas estamos em outra onda. “Liberou geral” é o lema do momento. Deixa rolar, vigiar eternamente não está com nada. Pais e mães encontram-se num dilema torturante: tornarem-se uns chatos ou perderem a função de formadores do caráter dos filhos. Há o “caminho do meio”, mais fácil no discurso que nas decisões do dia-a-dia.
Eu pensei que estava discretamente vigilante. Pensei que meu filho estava protegido da malandragem da praia e dos terrenos baldios, mas ele entrava em contato com as bases da picaretagem da classe dominante. Pensei que meu filho estava aprendendo a jogar bola, mas ele assimilava — de outra maneira — a lei da vantagem e o liberalismo de Gerson.
Talvez o leitor queira saber se tirei o menino da escola de futebol. Enquanto eu pensava na melhor forma de fazê-lo renunciar à fama — e lá se foram os marcos e ienes — o próprio garoto desistiu de praticar o esporte. Procurei saber as razões da decisão, mas ele disse apenas que estava difícil fazer amigos entre os jogadores. Apesar da solução pronta, ainda tentei explicar-lhe minhas restrições ao que se passava no clube. Não sei se ele as entendeu. O tempo dirá. Reféns e construtores do futuro, resta-nos a eterna vigilância, por custosa que seja.
Liberdade é um treino muito delicado.
publicado no jornal “A Tribuna” de 21/03/92