Luiz A G Cancello
Estamos num bar. Meu amigo Carlos, em vez de dizer que está com fome, fala: “Eu sinto a baixa da glicose”. O Chico senta na mesa. Gosta de praticar esportes radicais. Conta-me que precisa de adrenalina. Acrescenta a endorfina, “que é antidepressivo”. O José pede massa. Diz que é ótimo, traz energia, são carboidratos de rápida assimilação. A Cristina, esposa dele, me conta que está cansada de ser briguenta, mas não consegue se controlar. Diz que seu excesso de cortisol até dói no fígado. Alguém diz que o filho não entende sua paixão sexual pela ex-namorada. São os feromônios, conclui.
Ouço tais afirmações nos mais diversos ambientes. A cada momento fico intrigado com o vocabulário dessas pessoas. Recorrem a termos biológicos para exprimir o que sentem. Pouco ou nada sabem sobre os compostos químicos que nomeiam com total naturalidade. Por que essa terminologia toma conta do discurso sobre si mesmo? O que está havendo com nossa autodescrição, o primeiro passo para o autoconhecimento?
Trata da medicalização da vida, dizem alguns. O vocabulário biológico é estimulado para que nos vejamos como máquinas bioquímicas. A partir disso pensamos que para tudo há um remédio, eximindo-nos do autocontrole, da introspecção, do autoconhecimento. Há quem acredite num conluio dos grandes laboratórios, manipulando a subjetividade das pessoas, para que comprem cada vez mais remédios. Prefiro, no entanto, antes de ir a teorias conspiratórias, descrever as contingências que permitem o aparecimento de tal biovocabulário.
1 – Na era tecnológica os homens passaram a acreditar – a ter fé – no discurso da ciência. Ignoram a bioquímica de carboidratos ou feromônios, mas evocam tais entidades como causas últimas. No campo do comportamento, se há o respaldo de um neurocientista midiático, tudo se explica. Até a paixão e o altruísmo são referendados pelos conhecedores da evolução do sistema nervoso, mesmo que pesquisas sérias ainda não estabeleçam com clareza as relações entre mente e cérebro.
2 – Ao se contentar com o recurso do biovocabulário, o sujeito se exime de uma descrição mais acurada, de buscar os fatos e sentimentos que ali fazem sentido – de construir uma história. Esta procura requer tempo e introspecção, recursos escassos na era da técnica. Se um dia a humanidade sonhou com coincidência de o Verdadeiro, o Bom e o Belo, buscamos hoje o Pós-Verdadeiro, o Rápido, o Eficaz.
3 – O refinamento da descrição dos sentimentos humanos é campo da Literatura, do Teatro, da Pintura, das Artes em geral. O sujeito que tem familiaridade com a apreciação artística desenvolve um cabedal amplo e precioso para refinar sua percepção do mundo e de si. Isto requer paciência e dedicação. Rapidez e eficácia não são seus guias.
4 – Não se trata de desqualificar o conhecimento científico, que tantos benefícios traz à humanidade, mas de estabelecer seus limites. O autoconhecimento depende de uma das tantas linguagens disponíveis na diversidade da cultura. Algumas permitem ampliar a percepção de meu lugar no mundo, outras o estreitam. Eu não quero, pois me empobrece, usar a linguagem da biologia para descrever e entender minha experiência subjetiva. Questão de escolha consciente, não de obscurantismo.
O filósofo Charles Taylor sintetiza: “Que melhor medida da realidade dispomos nos assuntos humanos do que os termos que, submetidos a reflexão crítica e depois da correção de erros que pudermos detectar, oferecerem o melhor sentido de nossa vida?”
Publicado no jornal A Tribuna, de Santos, em 9 de fevereiro de 2019.