Beatriz

Luiz A. G. Cancello

Recebi hoje uma correspondência de Beatriz. Está datada de depois de amanhã. Tudo por aqui tem acontecido de modo inusitado, os domínios de Cronos não teriam passado ilesos por esta vaga de estranheza. A carta, se posso chamá-la assim, veio pelo modem, através de arquivo pessoal deixado na minha BBS. Depois de uma certa resistência, minha correspondente resolveu comunicar-se via telemática. Agora suas palavras voam à velocidade da luz. Um Zéfiro toma conta dos fios.
Ligo a impressora. Um pouco da alma de minha irmã desmancha-se nos bits que passam para o papel, recompondo-se nos caracteres onde lerei seu recado. Certamente contém, em meio aos assuntos que nos dizem respeito, a letra de alguma nova canção. Ela ainda não usa a informática para elaborar as partituras. Trabalha a melodia no violino, à moda antiga, e vai escrevendo as notas na pauta, com a velha caneta-tinteiro que foi do nosso pai. Usa o correio tradicional para me enviar esses papéis. Recebo-os e edito a música no computador. Reproduzo os pequenos pontos negros sem saber o que faço, reencarnando um antigo monge copista. Depois ouço o resultado na placa de som, enquanto leio novamente a carta onde a letra está escrita.
Então tudo muda. Os minúsculos besouros pretos, sentados nos cinco fios, adquirem vida. Beatriz reaparece no quarto, exatamente na forma em que a vi tantas vezes, sentada na beira da cama, o arco nas mãos, o instrumento apoiado no ombro, o rosto encostado na madeira. Sob o jugo dessa presença minhas pernas tremiam, os joelhos fraquejavam. Sentava-me a seu lado, embevecido. Tinha com ela a intimidade de Sansão com a lâmina de Dalila, as forças sugadas por um buraco negro virtual. Então eu evocava algum fato passado na família, principalmente com nosso pai ou nossa mãe, para lembrar o sangue partilhado.

O gato de Beatriz entra e deita embaixo da mesa. Espera.

Éramos seres bastante peculiares. Minha irmã não tolerava a proximidade dos outros homens. A cada galanteio recebido, era possuída por uma pomba-gira com spin anti-horário, gerando um ciclone capaz de espalhar escombros pelos doze espinhos da rosa-dos-ventos. Isso me deixava em júbilo. Certa vez cheguei em casa e um desses idiotas estava na porta, tentando prolongar a conversa com Beatriz. Fui apresentado ao sujeito, como a educação preconiza. Cumprimentei-o desejando ser um Capitão Gancho com problemas de lateralidade. Em dois minutos ele estava longe, acenando da esquina. Havia em nós essa força repulsiva, centrífuga para os outros, centrípeta para nós, uma auto-gravidade.
Sem minha irmã por perto eu não entrava em sintonia com nenhum ambiente. Às vezes sentia que não era do lugar, olhando a realidade através de um écran esfumaçado, o corpo suspenso num canto perdido do hiperespaço. Outras vezes temia dissolver-me no mundo, tornando-me parte viva de cada detalhe da matéria, pedaços de um deus mergulhado num panteísmo sem freios. Sem ela faltava-me o sentido do peso, a certeza de estar plantado no solo, próximo às coisas, mas distinto de todas elas. Beatriz era o eixo, a referência, o norte.
Seu olhar firme escancarava as minhas feridas, em seguida com palavras doces as aliviava, como usava o ovo de madeira para abrir até o limite os buracos das minhas meias rotas, preparando a tarefa de cerzi-las. O rosto de minha irmã tinha a regularidade e o tom sagrado das mandalas indotibetanas, mas não devo evocá-la nessa dimensão, eu, sacrílego nos pensamentos e nos tantos atos abortados no limite do tempo.

Recebo agora, quando o passado revolve minhas entranhas, uma carta de Beatriz, datada de depois de amanhã, prenúncio de um impossível Kairos. Não sairei ileso deste embate, onde a tirania da memória vai aniquilando a força já combalida do desejo. Alguma vez pensei que valeria a pena compreender a totalidade do mundo nem que fosse por um instante, mesmo na última fermata antes do acorde final. A visão derradeira, o último bit, a eternidade prometida, e valeria a pena ter passado pelo mundo. Esta foi a única razão por que adiei o fim até agora, até este tempo onde, finalmente, começam a pesar-me as imagens e a dúvida.

Estávamos sentados naquela cama, eu à esquerda de Beatriz. Foi muito rápido, uma folha da partitura caiu no chão, inclinei o corpo para a frente afim de pegá-la, distraí-me, minha irmã também se distraiu, o arco do violino roçou meus cabelos à altura da nuca. A cabeça fez um movimento para cima, fechei os olhos, consegui voltar a mim antes que os elétrons terminassem seu movimento desvairado pela coluna vertebral, foi muito rápido. Não olhei para trás, mas a música aumentou momentaneamente de intensidade, uma variação sutil, ali onde haveria um pianíssimo soou um piano e logo em seguida tudo pareceu voltar ao normal.

As pausas. A música tem pausas, isso um dia Beatriz me fez notar, esse detalhe extraordinário. Há um silêncio permeando os sons, um tempo em geral muito curto, quando o arco pára o movimento e permite que outras coisas aconteçam. Nesse instante preciso Beatriz suspendia o olhar do ponto fixo onde o instalava, em algum ponto das cordas apertadas, para rapidamente me procurar. Por sincronia, intuição ou certeza, meus olhos sempre estavam prontos para recebê-la. Relâmpagos trocados entre as notas, pausas tecladas sem consciência no branco na tela. Sinto formigarem meus dedos inquietos, percutindo esses momentos durante tantas noites dedicadas à arte de Beatriz.

Era um dia como tantos outros. Sentei-me em frente ao computador para trabalhar. A imagem no vídeo chamou-me a atenção, antes mesmo de ligar o aparelho. Beatriz aproximava-se em silêncio por trás da cadeira, como tantas vezes fazia ao chegar da rua, para sussurrar um “buuu!” no meu ouvido, trazendo o prazer indescritível de um susto suave. Desta vez flagrei-a antes de ato, surpreendendo seu vulto no reflexo do écran desligado. Virei-me para devolver a surpresa, trocamos sons abafados e hálitos numa proximidade desconcertante. Voltei o rosto para a frente num gesto rápido e liguei a máquina. O “bip” inicial indicava o bom funcionamento do disco rígido, dando-me a ocasião para esboçar um sorriso leve. Quando olhei novamente para trás, Beatriz já tocava a primeira nota no violino, escolhendo uma melodia sem pausas.

Recebo hoje uma carta de Beatriz, datada de depois de amanhã. Uma garganta de Cronos vomita seus filhos antes de comê-los. O texto já está impresso; a seu tempo lerei o tema da canção. Quero agora lembrar-me do último olhar, o adeus soprado baixo, um beijo leve na face, a mão segurando minha cabeça, ali onde havia pousado o arco do violino. Liguei o screen-saver e levantei-me para o abraço final. A caixa do violino descansou na cadeira de onde eu saíra. Um colchão de ar finíssimo teimava em permanecer entre nossos corpos.

O gato esfrega o pêlo na barra da minha calça. Agora sou eu quem o alimenta. Daqui a dois dias fará nove meses que Beatriz saiu desta nossa casa.

Este conto está na página 129 do livro “Dia-a-dia: fragmentos”.