O livro da jornalista Betina Anton pretende traçar a história dos dias em que Josef Mengele esteve no Brasil, depois de uma fuga quase inacreditável da Europa, passando por Argentina e Paraguai (e protegido por Perón e Stroessner, os ditadores da época).
A obra, no entanto, vai muito além desse propósito inicial. O texto vai buscar, numa quantidade enorme de fontes, quem era o homem Mengele. E vamos nos deparar com uma personalidade complexa e culta – lia bons livros, escutava música clássica e conversava em alto nível. Tinha dois doutorados, em Medicina e Antropologia, muito estudo, mas era completamente desprovido de piedade e ética, como já se sabe. É de se pensar o que seria “Ética” para uma pessoa formada no nazismo e na escola da Eugenia, que propunha os conceitos de raças superiores e inferiores.
Para ilustrar o nível de atrocidades que eram perpetradas pelo médico, a autora recorre à bibliografia e a entrevistas com sobreviventes dos campos de concentração. Ela descreve algumas das experiências pretensamente científicas conduzidas pelo médico, deixando claros o horror e a barbaridade, sem cair em exageros ou sensacionalismo
O ponto de partida do texto é curioso. A escritora fez o ensino fundamental no Brasil, numa escola alemã. Em dado momento sua professora não foi mais dar aulas. Betina sempre se perguntou o porquê do sumiço. Muito depois, por circunstâncias e coincidências da vida, soube que a professora foi uma das pessoas que deram guarida a Mengele. Este acontecimento foi um dos estopins que a fizeram escrever o livro.
Uma pregunta permeia a narrativa: “Como foi possível?” Como foi possível que um dos homens mais procurados do mundo vivesse praticamente em paz, num sítio do interior de São Paulo, não muito longe da capital? Esse homem, cujo rumo era perseguido pela polícia de diversos países, pelos caçadores de nazistas, pelo Mossad, o temível Serviço Secreto israelense, escapou de todas as investigações e morreu afogado na praia de Bertioga, num dia em que ia se divertir com amigos. Como foi possível? O livro delineia a resposta com brilhantismo. Ao acabar a leitura, vemos como as mais diversas circunstâncias, o acaso, a cumplicidade entre os nazistas e simpatizantes espalhados pelo mundo e uma sorte incrível contribuíram para a impunidade do “Anjo da Morte”, como foi chamada essa criatura singular e cruel.
É impressionante a rede de apoio que Mengele teve no Brasil. A maioria dessas pessoas eram ligadas ao nazismo, mas outras não o eram, ao menos explicitamente. Houve uma porção de europeus, notadamente alemães, austríacos e húngaros, que se propuseram a ajudar o carrasco. Por quê? É bem difícil responder. Em certas passagens do livro tem-se a impressão de que a ajuda se deu simplesmente por ser um europeu em apuros num país de latinos, numa época em que os preconceitos eram ainda mais fortes que hoje.
Não é demais enfatizar a capacidade de trabalho da autora. Ele fez inúmeras entrevistas, viajou, leu um sem-número de obras. Todo esse material está relacionado no final do livro. Foram seis anos dedicados à tarefa. E como se não bastasse o empenho, Betina Anton escreve muito bem, prendendo a atenção do leitor. Um livro que vale a pena ser lido por sua excelência e também por gerar muita reflexão. Não é possível ser indiferente a tal leitura.