Apreciação de Luiz A G Cancello
Maria João é abordada com violência por dois homens. Desmaia. Chegando no hospital, os médicos descobrem uma arritmia em seu coração. Recomendam que evite emoções fortes, uma impossibilidade para quem vive em São Paulo.
A moça resolve passar um tempo numa cidadezinha pacata, onde seus avós moravam. A casa da família ainda está lá. Em seu retiro acaba encontrando Sara, amiga de infância, e seu filho Nico, de uns 10 anos, O menino, muito vivo e inteligente, tem um linfoma. Na busca desesperada de cura, a mãe leva o garoto para outra cidade, a fim de tentar um tratamento espiritual. Maria João vai junto com eles, um deslocamento fora de seus planos, convencida pela amiga.
A partir desse roteiro, que assim resumido não parece emocionante, Giovana Madalosso consegue fazer um thriller. Os acontecimentos e reflexões da protagonista se sucedem com agilidade, narrados em primeira pessoa por Maria João.
Há três personagens principais em constante interação. Maria João é a jornalista que pretende se refugiar no interior. Sara, a amiga religiosa sem questionamentos, traz a vontade de viver no seu mais alto grau e a garra de buscar a cura do filho a qualquer preço. É uma mulher de certezas. Mesmo quando confrontada com o conflito entre sua origem evangélica e o tratamento espiritual, reage com pragmatismo, Vai em frente e seja o que Deus quiser. O terceiro personagem, Nico, é encantador. Ao contrário da mãe, reflete com uma inesperada maturidade sobre a vida e a espiritualidade. Maria João dialoga com o menino:
“Fiquei surpresa. Por acaso você…. não acredita em Deus? De repente seu olhar envelheceu: Ele que não acredita em mim. Depois baixou o rosto e prosseguiu: Deus acredita mais em qualquer menino da minha escola que em mim. E nem é que eu não acredito nele. Só não acredito do jeito que a minha mãe acredita. Fiquei surpresa, tentei não transparecer. E como ela acredita? Ela acha que Deus é tipo um homem, de barba, que fica vigiando todo mundo o tempo todo. E você? Uma vez sonhei que Deus era uma menina. E ela não parava de chorar. Então é assim que você imagina Deus, como uma menina triste? Não. Quem imagina Deus assim é o meu sonho.”
A relação entre Maria João e Nico é a parte mais bonita e comovente do livro. Por duas vezes, Sara sai da pousada em que se hospedam e os dois ficam sozinhos. Nesses momentos a amizade vai se consolidando. A fragilidade do corpo do menino e as reflexões sobre seu estado colocam a moça frente a suas questões existenciais. É Nico quem fala:
“E eu descobri, num app de leitura de mão, que vou viver até os noventa e dois anos. Apontou para a palma. A linha da vida tá meio apagada por causa do transplante, mas vê como chega até o pulso? Pegou a lanterna, iluminou o ponto. Fingi que olhava, mas tudo o que via era aquele sentimento tão estrangeiro a mim: a esperança. A desgraçada era bonita, uma variação florida da teimosia. Percebi que tê-la era escolha. Uma escolha que, no meu caso, vivia sendo barrada pelo meu cinismo. Qual era a vantagem de dissecar com o bisturi da lógica tudo que aparecia pela frente quando a dissecação não me trazia benefícios?”
Como se observa nas citações, Giovana Madalosso escreve os diálogos sem aspas ou travessões. A compreensão de quem fala, no entanto, é bem clara. Ela usa também vírgulas em sequência para expressar certas pausas, numa analogia com as batidas do coração fora de compasso, até onde posso perceber.
O livro trata de muitos aspectos da vida. Aborda a fragilidade do corpo e a possibilidade de superá-la (ou de suportá-la) por meios químicos, por mudança de vida e por busca religiosa. O sagrado, em suas muitas formas, permeia a narrativa. A cada capítulo Maria João está diante da possibilidade da morte, da morte de Nico e da sua, pois as arritmias aparecem em ocasiões inesperadas. Durante a busca das curas espirituais, em que a narradora se vê enredada sem convicção alguma, precisa dar conta de seu trabalho remoto, de sua sexualidade, de seus pais problemáticos, das coisas do cotidiano. Há trechos de humor bem divertidos, em meio à seriedade das questões levantadas. A autora une tudo isso numa história envolvente e muito, muito bem escrita.
Embora tente fazer apreciações de livros com o olhar de leitor, neste caso não posso evitar meu viés de psicólogo. A fenomenologia do sofrimento, a voz e os sentimentos dos seres envolvidos na doença, é um dos tantos pontos altos de Batida só – o nome se refere à batida desregulada do coração. Giovana Madalosso nos convida a ver as patologias de dentro, a partir da perspectiva dos que sofrem. Vale o mergulho.