Barzinho noturno

Luiz A G Cancello

Claro, vamos no barzinho escutar um pouco de MPB. Está uma noite fria, chuviscosa, a gente pega um Uber pra eu poder tomar uns goles. Não há nada melhor pra fazer, você tem outra ideia? Então vamos lá, mesmo.

Não tem muita gente conhecida, mas olha, tá chegando aquele casal que a gente gosta, convida eles pra sentar aqui. Legal, já temos com quem conversar, embora a gente se baste, mas um pouco de contato social é bom, traz novos ares, novos assuntos.

A música é legal, né? O pessoal conversa mesmo, mas dá pra escutar o cantor, até a flauta e o violão a gente consegue distinguir, com algum esforço. Os caras são muito competentes e afinados, é verdade que eu preciso me concentrar pra ouvir os detalhes, fico com o pescoço meio tenso, um analgésico dá jeito nisso, mais tarde. Tudo tem um preço.

É bom conversar, o problema é o tom de voz, tem de ser alto o suficiente pro meu amigo me escutar do outro lado da mesa, mas não pode ser tão alto a ponto de atrapalhar a música. É um exercício de controlar as cordas vocais, tantas vezes fico rouco com o esforço, mas vale a pena, nós dois ouvindo música e socializando, beliscando umas coisinhas gostosas, quer coisa melhor para esta noite cinzenta?

Bem, já estamos aqui há umas duas horas, é o suficiente, mas sei que você não concorda. Te conheço, ficaria nessa enrolação até o sol raiar, pra minha sorte a casa tem um limite de horário, o som acaba às onze, senão os vizinhos reclamam, o problema é que ainda falta mais de uma hora, e pra mim já deu. Mas isso é assim mesmo, os ritmos de cada um são diferentes, estamos no tempo de celebrar a diversidade, vamos até onde for possível, até os limites elásticos do possível.

Tenho de concordar que está tudo perfeito, o petisco veio no ponto, muito saboroso, a bebida é de primeira qualidade, os companheiros de mesa são educados e interessantes, nem sempre temos essa sorte, é que hoje eu não estou no espírito, não é culpa de ninguém, talvez fosse melhor ter ficado em casa, mas vamos ficando aqui em nome da convivência, até que essa canção é bonita, muito bem tocada, quem sabe me dá um gás, um alento, o último suspiro, desculpe, vou evitar fazer drama.

Acho muito bonita a mania de todos cantarem junto com os músicos, fazemos uma bela comunidade, a questão é que essa música é lenta, o cantor divide as frases à sua maneira e com muito bom gosto, já não se pode dizer o mesmo da assistência, que vai se desencontrando, um coro estapafúrdio, mas é tudo porque estamos junto neste congraçamento de brasilidade, quem sabe a harmonia seja outra, aquela de viés socializante, esqueçamos um pouco as exigências musicais.

Agora um samba, que legal, todos mexem o corpo em suas cadeiras, pode-se dizer que mexem as cadeiras nas cadeiras, trocadilho idiota, mas é o que me ocorre, rio por dentro, preciso achar graça em alguma coisa. Sei que você está com vontade de levantar e sair sambando, não o faz por que nenhuma das possíveis cabrochas deste bar de classe média ousa ficar de pé e mexer as cadeiras fora das cadeiras, olha aí de novo, a verdade é que todos sorriem, eu também sorrio, afinal tenho de manter a pose para não estragar a sua noite. Até finjo cantar junto, a que ponto chegamos no afã de socializar, é assim que as coisas são, paciência.

Agora já não estou me aguentando, mando mensagens pros meus filhos, o que esses caras estão aprontando a esta hora?, evito ficar mexendo no celular quando estou em grupo, me parece no mínimo deselegante, mas dane-se, todos já olharam para suas telinhas, é minha vez. Lembro-me que esqueci de ligar para um amigo, saio de mesa e vou para os fundos do bar, a voz dele me tira um pouco da balbúrdia, até esqueço onde estou, mas é por pouco tempo. Volto esbarrando nos presentes, o lugar está cheio, o dono do bar sorri pra mim, sorrio pra ele.

O show já vai acabar, agora tocam um samba bem conhecido, os músicos incitam a plateia para acompanhá-los, para meu desespero todos sabem a letra e arreganham suas goelas em máximo volume, o que fazer, abro também minha boca, quem sabe assim a contração da musculatura da face impeça as lágrimas de caírem, que exagero, mas é quase assim que me sinto, às vezes me desconheço, claro que isso não é novidade. Até penso que deve acontecer o mesmo com outras pessoas aqui nesta noite, ligo um radar para varrer cada face, mas as sutilezas não se mostram, com toda essa gente cantando feliz não há sofrimento que se destaque da avassaladora massa sonora.

Agora acabou mesmo, é hora de pagar e ir embora, tento alcançar a fila do caixa, todos tiveram a mesma ideia na mesma hora, todos se espremem e sorriem uns para os outros, se tivéssemos um estoque finito de sorrisos ficaríamos sem esgarçar os cantos da boca pelo resto do ano, mas não é assim, conseguimos sorrir indefinidamente, com vontade ou não, este último chamado de sorriso amarelo, vai entender o porquê. Estou divagando, mal escuto a moça do caixa me perguntar se é cartão ou dinheiro, é dinheiro, nem quero pensar o quanto gastei por cada hora sentado no bar, pago e, claro, sorrio para todos, a caixa, o pessoal simpaticíssimo da fila, os garçons, os músicos, aí que dor no maxilar, chama aí o Uber, vamos esperar nesse chuvisco de lavar a alma, convenhamos que meio mal lavada, é uma chuvinha besta, daqui a pouco estaremos em casa.

Que bom que você gostou da noite, meu amor, faço tudo pra lhe agradar. Eu gostei, sim, talvez não tanto quanto você, mas a vida é assim, um dia um fica mais contente, outro dia será a minha vez, agora quero dormir. Não, não quero acabar de ver aquela série, pra ser sincero detesto séries, essa americanização da vida, sou meio nacionalista, coisa de velho. Só quero dormir, acordar no domingo, não ter compromisso. Tá, sei que temos de ir à casa de alguém, mas nem me lembre disso agora, deixa eu pensar que estarei com o dia livre. Preciso acertar umas contas. Comigo mesmo, antes que você pergunte. Durma bem, querida.