Baratas, de Scholastique Mukasonga

Apreciação emocionada de Luiz A G Cancello

Neste livro Mukasonga escreve sobre sua trajetória, a infância em Ruanda, o exílio para uma região inóspita dentro do próprio país até sua inesperada – para uma tutsi – aprovação no Exame Nacional do Ensino Médio e seu acesso a níveis de educação mais avançados. Já formada em Assistência Social, trabalhando numa missão da ONU em Burundi, conheceu seu marido, um francês. Foi morar na França, onde revalidou seu diploma, trabalhou e teve dois filhos. Não estava Ruanda no massacre de 1994, quando os hutus assassinaram 800.000 tutsis. Ela acredita que o empenho dos pais em estimular os estudos dela e de André, seu irmão mais velho, seria uma forma de a família se perpetuar. Esta narrativa dá sentido ao livro.
Mukasonga tinha visitado a família em 1986, sem saber que era a última vez que os veria. Escreve sobre a intensidade de seu conflito:

Eu não estava entre os meus quando foram cortados a fação. Como é que pude continuar vivendo nos dias da morte deles? Sobreviver! Na verdade, essa era a missão que nossos pais tinham confiado a mim e a André. Deveríamos sobreviver, e no momento eu sabia o que significava essa dor. Era um peso enorme que recaía sobre os meus ombros, um peso muito real, que me impedia de subir a escadinha que levava do à sala de aula, me fazia parar em frente à porta meu apartamento, incapaz de abri-la e entrar. Tinha a meu cargo a memória de todos esses mortos. Eles me acompanhariam até a minha própria morte. (p. 132)

Os acontecimentos de 1994 estão entre os mais terríveis e sangrentos da história moderna. Mukasonga não nos poupa os detalhes, mas sua intenção está longe de “querer chocar” o leitor. A escrita tem a direção de mostrar a o que viveu um povo inteiro, chamados por seus algozes de inyenzi, baratas, assassinado por puro preconceito étnico. A preocupação de se afastar da avaliação puramente numérica do genocídio – 800.000 mortos – está presente a cada passo do texto, dando as cores fortes dos indivíduos concretos que foram atingidos pela barbárie.

Em Ruanda, são as famílias que levam comida para os prisioneiros. Foi isso que Jeanne-Françoise fez. Claro que não passava de puro sadismo da parte dos carcereiros. Cada dia, portanto, Jeanne-Françoise devia levar a refeição para o pai. Cada dia, também, ela o via com mais um membro amputado. Encontrava-o com menos dedos, uma mão, um braço, uma perna a menos. Devia aproximar-se dos pedaços sangrentos daquele que tinha sido o pai do qual tinha tanto orgulho, o pai que em suas descrições era tão belo, tão forte, tão inteligente. Foi a imagem desse pai que eles destruíram, encoberta pela imagem in- suportável do pedaço de carne ensanguentado que lhe era apresentado. (p.139)

Depois de muito conflito interno, Mukasonga volta a Ruanda, em 2004, com o marido e os filhos. Percorre sua aldeia abandonada, o mato cobrindo o que foram as casas e as vidas que abrigavam. Por pequenos sinais no chão, restos de um cercado, pedras de construção, caibros caídos, vai tecendo suas recordações e dando vida às pessoas e das famílias que ali tiveram sua morada.

Também havia Gakwaya. Assim como eu, sua esposa chamava-se Skolastika. Ele tinha sido chefe em Ruhengeri. Achava que plantar depunha contra sua dignidade e suportava a fome com nobreza no drapeado impecável de sua canga branca. De longe, ouvia-se sua chegada, pelo rangido dos seus velhos calçados; suas solas muito deixavam-no bambo. Mas ele se recusava a usar as sandálias que todos os outros refugiados faziam a partir de pneus. As tiras de couro dos seus sapatos eram tudo que restava do seu antigo esplendor. (p. 171)

Baratas é uma obra forte e reveladora. O leitor acompanha a tentativa de Mukasonga de não deixar esquecidos seu povo e seus entes queridos, desde a família até os vizinhos, que em Ruanda têm especial valor na vida da comunidade. O contato que a autora nos proporciona com o extremo de crueldade da natureza humana é um alerta, talvez um pedido desesperado para fazermos todo o possível para evitar outros acontecimentos semelhantes.