Auto-retrato

Luiz A. G. Cancello

o tempo corre
e vou fazendo as coisas
pensando no parafuso que falta
para montar meu brinquedo novo.
penso nesse parafuso
como se ele, depois de colocado,
fizesse descer sobre mim
uma paz absoluta,
e todas as coisas estarão
em seus lugares devidos.
o nirvana, agora,
é um parafuso a ser comprado
para o brinquedo novo;
e uma vez em seu lugar
a história estará encerrada
em seu tempo certo.

mas enquanto erra o tempo
e outras coisas se desenrolam
e se enrolam, melhor dizendo,
eu diria que o meu espírito
já está no balcão da loja de parafusos,
já pegou a chave de fenda
e está parafusando,
mas nunca antevê o brinquedo pronto.
como fosse um aproximar-se mais e mais
do objeto acabado,
sem jamais alcançá-lo;
uma idéia de limite,
          de tendência,
um delírio quase-matemático.

se acaso eu pensar no brinquedo acabado,
terei de pensar em fazer outro brinquedo;
posso até pensar em parar a história,
mas mesmo isso é um projeto de futuro,
demora também um certo tempo,
e nem sei parar de projetar brinquedos.

assim o tempo vai passando,
como um pensamento sempre inacabado,
com um brinquedo esperando
pelo último parafuso,
idílico ilusório e definitivo parafuso,
apertando as peças ainda desmontadas.

quando eu acabar o meu brinquedo novo,
esse brinquedo concreto (não o abstrato),
ficarei um bom tempo olhando para ele,
procurando-lhe os defeitos e o sentido.

ficarei ali tanto tempo,
que de tanto até se anula como tempo,
(quando a minha mãe vier chamar para o jantar,
devolvendo o lugar e a hora,
vou ficar um tanto aborrecido e ansioso)
até o próximo parafuso último,
até o próximo projeto de brinquedo
brincar com o parafuso próximo
       com o parafuso do próximo
                    parafuso do último
                                 brinquedo