Arraial

Luiz A. G. Cancello

Estávamos numa festa junina, comendo aquelas coisas de que nem gostamos tanto, a casquinha de pipoca estacionada nos músculos já flácidos da glote, o mesmo fenômeno ocorrendo com o amendoim, disfarça-se o engasgo travestindo-o de pigarro, a mucosa da boca ressentindo-se da temperatura e da acidez do vinho quente, algumas senhoras com saias caras que tentam imitar chita barata, senhores com camisas xadrez mais afeitas à Escócia que ao interior de sua pátria, aliás estávamos no Litoral, tudo isto é uma grande farsa, ou é simples folclore, a churrasqueira elétrica substitui a fogueira que ninguém pularia, o que faríamos com o ciático pinçado entre o fogo e o sereno, as conversas saltam do futebol que já não jogamos para os bens que nos bons tempos adquirimos, saudades das poucas viagens tantas vezes contadas e aumentadas, é como se lá estivéssemos agora, já é um consolo, quando voltaremos de verdade? talvez numa data improvável, o futuro a Deus pertence, lembra daquela vez que você telefonou para a minha casa pensando que estava ligando para o açougue? mas agora o bife apelidado de churrasco está no ponto, está mesmo uma delícia, o problemas são as fibras que se alojam entre os dentes, onde será que tem um palito? leva-se o copo à boca de um só movimento, que não sejamos traídos pelo tremor das mãos, pela nostalgia nos olhos, ou pelos sulcos da testa e de todos os cantos do rosto, o tempo ali passou o seu arado estéril, resta ao corpo a suposta respeitabilidade com que tentamos revestir nossas figuras combalidas, essa postura gentil que diz obrigado, dispenso a canjica, é assim que se chama essa pasta branca e movediça onde o milho verde se afoga? 
Não, minha mulher não veio, está adoentada, já não saímos como antigamente, vim apenas dar uma passada por aqui, rever os amigos velhos, bater um papinho, tomar um quentão. Acabou a pinga? A gente vai comprar um suprimento extra na padaria da esquina. Não é lá que tem uma balconista bonitinha? 
— A marca que mais vendemos, senhor, é a “51”, mas temos coisa melhor, de alambique. 
— Aposto que nenhuma pinga desta padaria é mais saborosa que você. 
Aquele sorriso era tudo o que faltava na noite, agora poderia voltar ao arraial de caquinhos de cerâmica e bandeirolas nos varais, até ajudaria a comadre a mexer a panela de quentão com a colher de plástico que seria de pau em outras circunstâncias, aturaria os comentários de que “o compadre voltou outro, o passeio lhe fez bem” e cuidaria de não gemer ao sentar-se, de evitar o quase inevitável “Ahhhhh…” gutural, que esse é um dos sons da velhice, aguentaria a dor nos rins como um faquir interiorano, quem saberá explicar o poder de uma bela balconista, se nem mesmo ela o exerce por querer, pois nem sabe que o detém, mas hoje uma mulher brilha e se extingue com a rapidez dos fogos de artifício que ninguém se lembrou de trazer, com tão pouco contentamo-nos agora, as parcas estrelas deste céu interceptadas pela lâmpada do quintal, os tufos de mata no terreno baldio ao lado, um sanfoneiro tocando arranjos abolerados no aparelho de CDs do neto do dono da casa, uma velha amiga ensaia uns passos de dança enquanto passa a bandeja das cocadas, caímos de vez no arrasta-pé, sou caipira-pira-pora, porra, que vida.