Ademir Demarchi
A solidão e a atenção intensa para hábitos ou objetos de uso que não mereceriam tanta atenção assim, denotando comportamentos estranhos, fazem a diversão deste livro através desses personagens que transparecem um grande pudor por estar diante do outro, estabelecendo-se sempre um embate de egos blindados em suas existências autossuficientes e tidas como naturais, normais. Cancello expõe com minúcias essas obsessões, que vão do apego a um sistema de funcionamento de uma casa, expresso no modo de usar as toalhas, de pôr o papel-higiênico em seu local de uso, o modo de cortar as unhas ou os pelos do nariz, o modo de escolha de senhas para uso no computador, a preocupação com a proteção através de telas nas janelas, o uso peculiar de uma manteigueira e até a obrigação odiosa de ter que tentar entender o outro para escolher um presente…
Essas existências, absurdas para quem está de fora lendo-as, se mantêm em suspensão de normalidade e naturalidade até serem abaladas por pequenos incidentes – “os pequenos incidentes me fascinam, trazem-me considerações sobre a ordem das coisas. Quando tudo está em seus lugares, nenhuma filosofia é possível”, explica-nos o narrador do primeiro conto. Elas são abaladas pela necessidade dos personagens travar relacionamento com terceiros, saindo de si mesmos e da confortável blindagem do ego para o confronto com os desejos e comportamentos de outro ser humano.
Como um dos contos sugere, estamos em tempos de GPS, de computadores ágeis e tecnologia, em que parece uma excrescência existir ainda a família com o casal nuclear, um filho antagônico e as variações possíveis dos seus apêndices, avós, tios, parentes diversos. Essas pessoas coabitam o mesmo teto, em geral um apartamento, mas sua solidão, a incapacidade de diálogo para compreender o que se passa no íntimo do outro é patente, o que os torna, sem solução, estranhos e cada qual com seus desejos e fantasias – “Chego no quarto que me cabe e minha mulher está em seu estado pretensamente cataléptico. Penso em arrancar-lhe a roupa e possuí-la. Ou matá-la”.