Apreciação de Luiz A G Cancello
Como pode uma escritora percorrer a passagem de uma menina à adolescência, onde nada acontece de sensacional, nenhum acontecimento mirabolante, e fazer com que o leitor não largue o livro?
A história de Annie John se passa na Ilha de Antigua, no Caribe. Embora muitos comentadores realcem no texto os aspectos do colonialismo, vejo essa vertente passar com um pano de fundo. Os conflitos de Annie John e sua bela mãe poderiam se dar na esquina da minha casa, numa cidade média brasileira.
A autora sabe mostrar, além das transformações internas da adolescência, a incompreensão e a ambiguidade das relações maternas e filiais. Seria preciso um outro vocabulário, com palavras que exprimissem sentimentos de, a um só tempo, amor e ódio, para dar conta da tarefa. Com tal linguagem direta não está disponível, Jamaica Kincaid se vale de sua habilidade em gerar imagens, metáforas e comparações preciosas. O livro é narrado por Annie, uma personagem intensa e inteligente. A intensidade da protagonista, para mim, é o recurso fundamental que permite ao texto desdobrar-se no seu melhor.
No ano em que completei quinze anos, me senti mais infeliz do que já imaginara que alguém pudesse ser. (…) Minha infelicidade era algo profundo dentro de mim e, ao fechar os olhos, conseguia até vê-la. Estava em algum lugar -talvez na minha barriga, talvez no meu coração; não saberia dizer com certeza-e tinha a forma de uma pequena bola preta, toda embrulhada em teias de aranha. Eu olhava e olhava para ela até que as teias de aranha queimassem, e então via que a bola não era maior do que um dedal, apesar de carregar todo o peso do mundo.
Tomo aqui um ponto já adiantado do livro, onde os conflitos são mais explícitos. É importante ressaltar que a relação entre mãe e filha vai sendo mostrada desde um amor incondicional da infância até se tornar o embate conflituoso da adolescência. Situações absolutamente triviais das meninas – a escola, as melhores amigas, o enterro de um parente, algumas travessuras e pequenas mentiras, as inevitáveis doenças da infância – levam o leitor a perceber (quase sem perceber) a mudança da qualidade do contato entre a protagonista e sua mãe. A menina se coloca no texto expondo seus sentimentos e reações ao que acontece, sempre num crescendo, com grande carga afetiva. Annie leva suas sensações e pensamentos até onde é possível, chegando um ponto perigoso, beirando a ruptura. Nesse percurso a figura materna sempre se apresenta, também ela uma mulher intensa, decisiva:
Tudo com que costumava me importar tinha agora um sabor amargo. Eu poderia começar com a visão das árvores florescendo, tão flamejantes, o vermelho das flores fazendo com que a rua em que eu morava parecesse em chamas ao pôr do sol; ao ver isso, eu me imaginava incapaz de me machucar se fosse andar por esse inferno. Poderia terminar comigo e com minha mãe; éramos agora um espetáculo a ser visto. (…) Eu me tornei mais reservada, e ela dizia que eu estava praticando para me tornar uma ladra e mentirosa – os únicos tipos de pessoas que tinham segredos.
Mesmo as figuras femininas secundárias são fortes, como a avó de Annie e as curandeiras. O pai é uma figura encantadora, a seu modo, mas sem a força da mãe. É longe dele que as duas mulheres se confrontam. No trecho a seguir a ambiguidade aparece crua e cruel.
(…) assim que estávamos sozinhas, atrás da cerca, atrás da porta fechada, tudo escurecia. Eu não saberia como explicar. Algo que eu não conseguia nomear simplesmente nos dominava, e de repente eu nunca havia amado e odiado tanto alguém. Mas dizer ódio – o que quero dizer com isso? Antes, se eu odiasse alguém, eu apenas desejaria que a pessoa morresse. Mas eu não podia desejar que minha mãe morresse. Se ela morresse, o que seria de mim? Eu não conseguia imaginar minha vida sem ela. Pior do que isso, se minha mãe morresse eu teria que morrer também, e assim como não podia imaginar minha mãe morta, menos ainda podia me imaginar desse jeito.
Sob o ponto de vista de uma certa Psicologia, pode-se ler o livro como a luta de uma filha para se separar de sua mãe excessiva. Este caminho reducionista, em minha opinião, não apresenta vantagens para o leitor. Se um acontecimento cultural e/ou biológico inevitável estiver desde sempre presente, o desfecho já estará antecipado. A melhor atitude será sempre desfrutar da fluidez do texto, deixando-se levar pelas descobertas de Annie. Jamica Kincaid nos convida a isso. Embarquemos.
Ganhei Annie John de uma jovem leitora, a Daniela. Ela estava hesitante em presentear seu amigo idoso com um livro, mas arriscou e me deu o prazer de ler Jamaica Kincaid. Valeu, Dani!