Luiz A. G. Cancello
Era uma família como outras tantas, reuniam-se aos domingos para o almoço na casa dele, cujo quintal comportava as dez pessoas habituais. Como a Sogra era elétrica e quituteira, à diferença de outros aglomerados familiares, nesses dias não comiam macarrão com frango, variando os pratos conforme a imaginação da cozinheira e eventuais sugestões do grupo.
O Sogro chegava antes e, enquanto a comida era preparada, cuidava do jardim. A Esposa dava palpites em flores, frutos e vegetais diversos, mas há muito não sujava as mãos na terra, reservando a delicadeza de seus dedos para o teclado do celular, consumindo seu tempo no WhatsApp.
Cada personagem tinha sua função. A Mãe do Dono da Casa, já bem velhinha, lamentava-se, evocando os tempos onde já fora ativa, não ouvindo o consolo dos outros, pois sua audição também já fora mais ativa em outros tempos. A Irmã do Sogro aparecia sempre, com sua risada fina e emitida sem mais aquela, em horas próprias e impróprias.
E havia a Cunhada, sagaz contadora de profissão e de casos, loquaz a mais não poder, desquitada há muito, mãe da Sobrinha, e vinham também o Marido da Sobrinha e o Sobrinho-Neto, filho dela. O Marido da Sobrinha não era o pai do Sobrinho-Neto, tendo aparecido depois nas reuniões, mas já fazendo parte do circo, como é de se esperar nestas modernidades.
O Dono da Casa já estava acostumado a tudo aquilo, e um dia pilhou-se a sentir falta da algazarra semanal, certa vez em que os sogros foram viajar. Tudo seria perfeito, não fora certos comportamentos um tanto livres da Cunhada, com suas histórias e piadas absolutamente fora de propósito, contados em voz alta o suficiente para animar o almoço dos vizinhos. A Irmã da Sogro escandalizava-se, a Sogra ria (enfatizando não ter dado tal educação à filha), o Sogro mantinha-se em seu calar habitual e olhar crítico, a Esposa (irmã da contadora) observava se alguém ficava muito escandalizado, o Dono da Casa fazia uma contra-piada irônica. A Cunhada, enfurecida, começava a xingar seu contraparente com expressões leves e em voz baixa, mas com o evoluir da confusão acabava mesmo por chamá-lo dos mais sonoros palavrões, para a perplexidade dos presentes. Aparentemente tudo acontecia em nome dos laços de família, pois todos estavam se divertindo. O Dono da Casa fazia gestos obscenos disfarçados, a outra não se agüentava, chamava-o de cínico e seguia o rosário de termos de baixo calão. A Irmã do Pai comentava, com sua risadinha fina de “Ih-ih-ih”:
— Nossa, eles se amam. Só pode ser isso.
A Sogra (depois de ter ido e voltado à cozinha uma centena de vezes) também ria e contemporizava:
— Esses dois não podem se ver!
A Mãe do Dono da Casa observava a movimentação e, sem entender (ou fazendo-se de desentendida), pedia:
— Me dá mais uma colheradinha disso aí.
A Esposa afastava-se para acender um cigarro, pois era a única com esse hábito, para crítica geral. Intervinha:
— Estou planejando parar de fumar.
Depois das palmas para esse projeto heróico, alguém notava o sumiço do Sobrinho-Neto.
— Onde está esse moleque?
O Dono da Casa retrucava:
— Manda a avó dele procurar. É um bom jeito de ela fazer alguma coisa de útil.
A Cunhada, atingida, ameaçava jogar-lhe uma faca.
Os Filhos do Dono da Casa apareciam mais tarde, pois tinham ficado na esbórnia até alta madrugada. Eram festejados com aleluias, cumprimentavam a todos, beijavam as avós e comiam com o apetite de adolescentes tardios. Não raro, arrotavam. A Cadela de Estimação, até agora zanzando entre as pernas dos presentes, interpretava o ruído com um chamamento e achegava-se aos rapazes, abanando o rabo.
A Irmã do Sogro sorria, o Sogro só olhava e pensava em tirar uma pestana, a Esposa vigiava em meio à fumaça e iria descansar quando o cigarro acabasse, o Dono da Casa saía descaradamente para dormir, a Sogra armava a mesa para jogar buraco com a Mãe do Dono da Casa, a Cunhada participaria do jogo mantendo o vocabulário (a velha senhora já havia se acostumado com as obscenidades ditas em tom mais alto), o pessoal da Sobrinha ia embora. Mais tarde, depois da sesta, os homens veriam o jogo de futebol e as mulheres conversariam no terraço. De passagem o Dono da Casa faria mais um gesto pouco delicado para sua vítima preferida e receberia uma resposta em altos brados, denunciando para a família inteira o comportamento pouco edificante do marido de sua irmã. A Irmã do Sogro sorria, etc.
Teriam convivido felizes por muitos e muitos domingos, se não tivesse passado por lá o Anão. Tocou a campainha ao meio-dia, pedindo algo para comer. O Dono da Casa levou-lhe um pedaço de carne, salada e purê de batatas. Convidou-o a sentar-se numa pedra do jardim da frente. Ficou ali, ouvindo casos recolhidos na rua, em noites dormidas ao relento, em percursos de rumos aleatórios. A cunhada, notando a ausência de seu interlocutor preferido, bradava, lá dos fundos:
— Onde está esse estrupício?
O convidado fez um ar interrogativo e ouviu a explicação:
— Não repare, é a minha cunhada maluca.
O outro respondeu, com certa gravidade na voz:
— Família é uma merda.
E voltou a comer, num gesto de quem entende as coisas.
Todo esse movimento, na aparência, nada teve de excepcional. Quando ouviu o brado da Cunhada, o Anão deixou o garfo parado a meio caminho entre o prato e a boca, ergueu a cabeça e girou-a levemente para o lado direito, em direção aos fundos da casa. Ao ouvir o esclarecimento do seu benfeitor, fez um sinal muito leve de assentimento, deixou passar o tempo exato e então proferiu a frase, Família é uma merda, um lugar comum falado em tom cadenciado, de reza. Desfez a postura atenta, baixou os olhos para a comida e continuou a refeição.
A combinação perfeita de tempo e tom, ou a solenidade com que foi dito algo tão banal, ou ainda o desenho deixado no ar pela mão e pelo corpo do Anão, algo ali foi marcante. A cena impressionou o Dono da Casa. Quando voltou para junto dos familiares, todos o olharam, mas seu rosto barrou as perguntas.
O silêncio ficou por ali, rondando, à espera de um novo impropério da Cunhada, mas uma força inexplicável travava suas cordas vocais. O Sogro, que havia dado uma espiada pelo corredor lateral, viu o genro quieto, esperando o pedinte acabar de comer. Voltou para o seu lugar, e nada comentou, pois havia entendido alguma coisa (não necessariamente a mesma). O Sobrinho-Neto dormiu, alguém soltou um suspiro, outro começou a tirar a mesa.
Um mês depois, em outra reunião familiar, ninguém falou episódio. Persistia apenas uma leve apreensão, uma expectativa de alguém tocar a campainha. É bem verdade que a voz da cunhada baixou um ou dois decibéis e a frequência com que o Dono da Casa fazia gesto obscenos caiu uns dez ou quinze por cento. Tais fenômenos, no entanto, só seriam acessíveis a um bom observador, mas o Anão nunca mais apareceu.