Luiz A G Cancello
A academia fica em frente ao meu prédio, do outro lado da avenida. Para chegar só preciso atravessar a rua, mas a idade traz cautelas. Explico. Calculo a distância e a velocidade do carro que vem vindo. Devo fazer a travessia de tal modo que, se eu desfalecer e me estatelar no asfalto, o veículo possa frear com segurança. Mesmo se a queda for apenas um tropeço ocasional, já não me levanto do chão com a presteza de antes. Até agora deu certo.
Na academia poucas pessoas me cumprimentam. Os recepcionistas, quando estão de bom humor, acenam com a cabeça. Uma personal trainer, cujo nome eu nunca soube, sempre me dá um sorriso. Os professores dão um alô protocolar, uns mais discretos que outros. Conheço um instrutor que gosta de conversar sobre música, mas nossos horários pouco coincidem. Ao menos sei como se chama. Muitos alunos e alunas são familiares, há anos frequentámos a academia perto de hora do almoço, mas não há palavra ou aceno. Penso que os mais velhos podem ser mais receptivos, mas nada me confirma a suposição. Às vezes faço com alguém um comentário ocasional, um gracejo, e fica por isso mesmo. Nada se estende no tempo. Somos desconhecidos frequentando o mesmo espaço.
Ao entrar na academia os mortais comuns colocam o polegar num leitor de impressões digitais, para liberar a catraca. As linhas do meu dedão, no entanto, foram apagadas pelo uso. Comigo o sistema não funciona. (Imagino que haja outros idosos com o mesmo problema.) Há um teclado no mecanismo da entrada, onde tenho de digitar uma senha de 6 números, alternativa ao padrão vigente para os mais jovens. As teclas são duras, o “enter” é enjoado, preciso pressioná-lo durante um tempo para liberar a entrada, parece que não vai funcionar. É um exercício de paciência.
Uma vez no recinto da academia coloco meu fone de ouvido, daqueles grandes, sustentados por um arco no meio da cabeça. Ligo o dispositivo, pego o celular, aciono o bluetooth, acesso o Spotify e escolho um podcast ou audiolivro. Ouvir música é impossível, pois há um som ambiente alto, seria uma colisão enorme de notas e harmonias. Vou para a esteira e começo o exercício aeróbico. Na minha frente há uma televisão muda, sempre ligada no canal de esportes. Tento me concentrar no que estou ouvindo, mas um gol, uma cesta ou um cruzado de esquerda me puxam para a tela. Em geral consigo me ater ao áudio, com poucos lapsos. Aproveito esse tempo também para observar o recinto, pois as esteiras ficam num plano mais alto que os aparelhos. Vejo muitas pessoas jovens e bonitas. Talvez eles também me observem, ou não. Pode ser que eu seja invisível. É uma boa hipótese.
Depois do tempo adequado vou ao treino de força. Primeiro me dedico aos membros inferiores. Em certos dias (poucos) é preciso esperar outros usuários acabarem seus exercícios, até chegar a vez de usar o aparelho. Estico panturrilha, flexiono perna, agacho, o suor escorre. Sempre faço os movimentos com a coluna apoiada, é um cuidado necessário. Gosto dos exercícios, sinto um cansaço prazeroso. Depois vou para o treino de membros superiores, no andar de cima. Subo as escadas, é a vez dos braços, ombros e tronco. Em seguida trabalho os abdominais, cada dia um tipo de exercício. Deitado no chão vejo a academia por outro ângulo. É curioso. Levanto-me com cuidado para não machucar as costas.
O podcast continua rolando. Uma pessoa nessas condições, com um artefato a lhe cobrir as orelhas, está dando sinais de estar imersa em outro universo, sem contato com os semelhantes à sua volta. Não é de se estranhar a falta de comunicação vigente. Apesar disso, sempre tenho a esperança de encontrar alguém conhecido para prosear. Nunca acontece.
Volto para casa. Atravesso a avenida com os cuidados já descritos. Há um mês foi instalado um dispositivo de reconhecimento facial no meu prédio. Não peço mais para o Antonio abrir a portão. Coloco meu rosto em frente à telinha, o robô me reconhece e diz, com voz feminina e anasalada: “Acesso liberado”. O caminho está livre. O problema acontece quando demoro para entrar. Aí não tem jeito, fico trancado do lado de fora. Preciso sair de frente do visor e mostrar de novo minha cara. Depois de diversas tentativas achei o tempo certo. Quando ouvir o “Acesso liberado”, empurro o portão na sílaba “ra”, da palavra “liberado”. Sempre funciona. Nunca deixo de dar bom dia para o Antonio, é bom ouvir o cumprimento de volta, a voz humana.
Moro no terceiro andar. Paro no hall e penso que devo subir pela escada, seria um esforço complementar à atividade física do dia. Tem corrimão, não há perigo. Uma força maior me impele a apertar o botão do elevador. Tenho o impulso de pegar o chaveiro e ficar brincando com ele entre os dedos. Acontece que há um pequeno vão entre o piso e a porta do elevador, um lugar propício para sugar pequenos objetos e levá-los ao desconhecido. Penso no transtorno e refreio meu ímpeto. Tiro a mão do bolso, conformado.
Há muito tempo, sei lá quantos anos, eu ia me exercitar sem tantas minúcias, ou não prestava atenção no caminho. Hoje é mais complicado e divertido. O mundo adquiriu outros contornos, tudo é feito com vagar e cuidado. Os detalhes vêm à tona, é preciso conta deles com atenção, decifrando cada um. Há sutilezas só agora percebidas. O cotidiano ganha outro encanto a vida ainda vale a pena.