A Vida pela Frente

Considerações de Luiz A G Cancello

O livro nos conta a relação de Madame Rosa, uma prostituta aposentada que cuida de filhos de outras prostitutas, com Mohammed, seu protegido favorito.

A escrita é retrospectiva. O relato é feito pelo menino, algum tempo depois dos acontecimentos. A voz de um Moma (seu apelido) mais velho vai contando a decadência física e mental de Madame Rosa, ao mesmo tempo em que constrói sua visão de mundo e tenta elaborar a perda da única pessoa que ama. Boa parte do relato se passa dentro do apartamento da velha senhora, no 6º andar de um prédio sem elevador.

A linguagem é de um adulto tentando perceber o mundo pelos olhos de uma criança, misturando propositalmente observações ingênuas e considerações filosóficas, fazendo com que o leitor se depare constantemente com parágrafos interessantes e surpreendentes:

Madame Rosa tinha achaques no coração e era eu que fazia o mercado por causa da escada. Os andares eram o que havia de pior para ela. Ela assobiava cada vez mais quando respirava e eu tinha asma através dela, eu também, e o dr. Katz falava que não existe nada mais contagioso do que a psicologia. É um negócio que ainda não conhecemos. Todas as manhãs, ficava feliz de ver que Madame Rosa acordava, pois eu tinha terrores noturnos e sentia um medo atroz de me ver sem ela. (p.52)

Moma tem vagas informações sobre sua nacionalidade e religião. Mesmo sua idade é incerta, e não sabe quem são seus pais. Vai tecendo sua visão das pessoas e das coisas a partir dessa total incerteza, aprendendo a se virar em condições difíceis, fazendo cenas teatrais nas ruas e cometendo pequenos delitos, aperfeiçoando um jeito sedutor já inato.

O prédio onde mora com Madame Rosa está localizado num subúrbio de Paris, habitado por pessoas de diversos tipos e nacionalidades. Há árabes, judeus, africanos e até mesmo um francês aposentado. A figura de Lola, um travesti senegalês que havia sido boxeur antes de se transformar, é notável:

Ela usava uma peruca loura e seios que são muito procurados pelas mulheres e que ela alimentava todo dia com hormônios, e se  entortava toda no seu salto alto fazendo gestos pederastas para provocar os clientes, mas era realmente uma pessoa não como todo mundo e a gente se sentia em confiança. Eu não entendia por que as pessoas são sempre classificadas pela bunda e que deem importância a isso, sendo que isso não pode nos fazer mal. Eu cortejava um pouco ela, pois precisávamos muito dela, ela nos passava dinheiro e fazia comida, provando o molho com pequenos gestos e cara de prazer, com seus brincos balançando e se pavoneando no seu salto alto. Ela dizia que quando era moça no Senegal ela derrotara Kid Govella em três ocasiões, mas que sempre tinha sido infeliz como homem. Eu dizia a ela: “Madame Lola, a senhora é como nada e ninguém”, e isso lhe dava prazer e ela me respondia: “Sim, meu pequeno Momo, sou uma criatura de sonho”, e era verdade, ela parecia o palhaço azul ou o meu guarda-chuva Arthur, que eram muito diferentes também. (p.100)

Durante boa parte do livro Moma se aflige com a possível perda de sua protetora. Vai observando as mudanças físicas e mentais de Madame Rosa e tentando entender o que acontece, tentando entender sua impotência para reverter o processo inevitável. A presença dos africanos, que moravam num apartamento cheio de gente da mesma tribo, dá a Moma uma visão alternativa da velhice:

O sr. Waloumba (…) nos explicou que no seu país era muito mais fácil respeitar os velhos e cuidar deles para adoçá-los do que numa grande cidade como Paris, onde há milhares de ruas, andares, buracos e lugares onde eles são esquecidos, e não se pode utilizar o Exército para procurá-los em todos os cantos onde eles ficavam, pois o Exército é para cuidar dos jovens. Se o Exército passasse o tempo cuidando dos velhos, não seria mais o Exército francês. (…) Na África, eles ficam aglomerados em tribos onde os velhos são muito procurados, por causa de tudo que eles podem fazer por você quando estão mortos. (…) O sr. Waloumba diz que os jovens precisam de tribos, pois sem isso eles se tornam uma gota d’água no mar e isso deixa eles malucos. O sr. Waloumba diz que está ficando tudo tão grande que nem vale a pena contar antes de mil. (p.124)

A interação entre esses indivíduos tão diferentes, suas rivalidades e intensa solidariedade (manifestada sobretudo quando Madame Rosa fica doente), é um dos pontos altos desse livro escrito há 45 anos. As considerações sobre o mosaico intercultural trazem o texto para a atualidade. Não é de hoje que as culturas se encontram e se misturam. A internet só escancarou as coisas.

O livro venceu o prêmio Goncourt em 1975. O autor, Romain Gary, valeu-se de um apelido (Émile Ajar) para inscrevê-lo no certame, pois já havia faturado o prêmio uma vez, e não é permitido repetir o feito. Ele também se despersonaliza e, como Mohammed, trapaceia e seduz os jurados. Magistral.