Luiz A. G. Cancello
Foi um momento imponderável, uma quebra.
João se percebeu de repente como alguém,
como esta pessoa (pretensamente) singular,
fazendo coisas e esbarrando em pessoas
pelo que até então havia sido sua vida.
Antes mesmo que o percebesse, já era esse.
E só pode perceber como era agora,
no momento da quebra,
ao sair do estado de embolado com tudo.
Noutro momento talvez se perceba diferente.
– ou seja: nunca saberá “mesmo” como foi.
E fazia projetos, e seguia projetos
(percebe agora!)
mesmo quando não os percebia como tais.
Fará, em outros momentos, outros planos.
– ou seja: nunca vai saber o que será.
Nesta ruptura presente – que lhe escapa,
não sabendo, a rigor, o que era
nem o que vai ser,
resta-lhe preencher o tempo
cuidando do mundo que o cerca,
coisas e pessoas,
procurando encontrar aí a própria face:
um vir-a-ser.
Mas essa face sempre lhe escapa!
Pois apesar do seu quarto “ter a sua cara”,
e ele ter “o jeitão do avô”,
e seu irmão ter “um andar igualzinho ao seu”,
e ele ser “um bancário típico”,
João às vezes desconfia que não é nenhuma dessas coisas,
POIS A FACE É VAZIA;
apenas contém todas as expressões possíveis.
Mas isto é cru, é cruel,
é muito perdido, é perdição,
é sem definição, é definitivo.
(os seres sem imagem especular
frequentam o limbo entre a vida e a morte,
dizem as lendas).
Assim, o homem foi criado – veio à vida!
à “imagem e semelhança” de Alguém.
Para que esse Alguém
ensaiasse a própria face
na argila da beira do rio,
já que a água nada refletia.
Nunca houve um ser com face própria.
Essa face carnal, tão valorizada,
tão expressiva,
apenas esconde o nada da outra,
a mais radical das angústias humanas.
Mas apesar disso, vai-se vivendo!
João assimilou a ordem das coisas
e a ordem dos homens
dados pela tradição.
Assimilou o engano chamado realidade:
esta é a Ordem Natural,
aquela é a Natureza Humana.
Subvertê-las é pecado mortal.
Os eixos de referência do mundo
ele os escutou de outros homens.
O conjunto de sons significativos
distribuídos linearmente
trouxe-lhe a configuração do que via e ouvia,
colocou ordem na somatória confusa
de suas sensações,
e onde havia Caos fez-se Cosmos.
Assim, aprendeu uma linguagem,
e com as palavras,
a partir da cara que lhe deram os outros,
(principalmente mamãe e papai),
por não confiar na mesmidade de sua face vazia,
(aquela anterior à sua cara),
por ter compulsivamente de depositar
seu legado especificamente humano
na conta da sagrada família,
DEFINIU-SE,
enquanto ainda era tempo –
na ilusão eterna
de não ser devorado pela morte.
publicado na Artéria – Santos Revista, em agosto de 1990