A Mulher de Pés Descalços, de Scholastique Mukasonga

Apreciação de Luiz A G Cancello

O genocídio de Ruanda foi um dos acontecimentos mais sangrentos da história moderna. Em 1994 os hutus massacraram 800.000 tutsis, uma tragédia que se anunciava desde os anos 60. A única personalidade que alertou a comunidade internacional, já naquela época, foi o filósofo inglês Bertrand Russell, mas não foi ouvido com a atenção que o assunto merecia.
Scolastique Mukasonga é uma escritora ruandesa que pretende resgatar, na escrita, a memória desses acontecimentos terríveis. Ela e seu irmão mais velho foram os únicos sobreviventes da família. A autora estava na França por ocasião do genocídio.


No livro “A Mulher de Pés Descalços”, Mukasonga fala de sua mãe. Conta a história dessa mulher que foi arrancada de sua região natal, com toda a família, e transferida para um sítio inóspito, Gitagata, ainda dentro do país, mas em tudo diferente de seu lugar original. No texto somos levados a acompanhar Stefania em seu esforço de não perder a identidade cultural e de salvar seus filhos do massacre iminente.


Um pouco depois de nos instalarmos em Gitagata, Stefania decidiu que estava na hora de construir, atrás da choupana de Tripolo, o inzu, casa que, para ela, era tão necessária quanto a água para os peixes e o oxigênio para os humanos. Não que ela aceitasse agora sua condição de exilada – nunca se resignaria a isso – mas sabia que precisava desse tipo de construção original. Só ali ela poderia reunir a força e a coragem necessárias para enfrentar a desgraça e renovar as energias para salvar os filhos de uma morte preparada por um destino totalmente incompreensível.


Mukasonga conta a história de uma família concreta, a sua família, com pessoas de personalidades bem delineadas, resgatando-as da descrição do genocídio em termos de números de mortos. Havia ali gente viva, com suas alegrias, seus cultos, suas relações calcadas na riqueza dos costumes ancestrais. Deslocadas de seu lugar original, morando agora num ambiente ameaçador, tentavam manter a vida dentro da normalidade possível, contornando os medos.


Em Gitagata, ninguém tinha coragem de levar a vizinha até a porta de casa. Todo mundo temia um encontro desagradável na estrada: com jovens do partido, com militares. (…) É verdade que daria para andar pelo meio do cafezal, mas não ousávamos pisar o tapete de ervas finas que os brancos nos obrigavam a cultivar e sobre os quais eles tinham lançado várias proibições. (…) Então, Stefania e a visitante paravam no fim da trilha, na beira da estrada, e depois voltavam para casa. Se tinham muitas coisas para se dizer, faziam várias idas e vindas: “Somos prisioneiras”, suspirava mamãe.


Mesmo prisioneiras, vê-se que tentavam manter seus modos de levar a vida. A autora não deixa claro o papel dos brancos nos acontecimentos terríveis que se esboçavam, mas é possível notar, no mínimo, um descaso, uma alienação frente às tensões desde sempre evidentes.
O livro vale muito pelas descrições dos modos de vida de um povo, sua maneira peculiar de encarar e ritualizar os nascimentos, o casamento, a morte. Mostra-nos também os muitos encantos de preparar os alimentos, escassos, mas cada um com seu significado.
Qualquer ser humano tem uma relação estreita com o lugar onde vive. Uma comunidade tradicional constrói laços muito fortes com a topografia, a vegetação, o tipo de animal com que convivem. Cada parte de seu território é carregado de significados. O exílio é uma tentativa de destruí-los em vida. A luta contra essa morte simbólica, protagonizada por Stefania, é um dos eixos desse livro perturbador.