Luiz A G Cancello
Quando se lê um livro excepcional, é frequente perceber desde o início sua qualidade, mas sem saber como a percepção acontece. De que recursos se utiliza o autor para nos prender à leitura? O que nos faz perceber que ali há algo a mais, além do comum?
Pretender fazer a apreciação de um livro com essa qualidade é uma tarefa difícil. O máximo que conseguirei, nas linhas que seguem, é ressaltar alguns aspectos de um texto brilhante.
Este é um livro sobre o ato de escrever. Sobre escritores, poderia ser dito, mas então parece que o livro só interessaria a tais seres estranhos. O livro é muito mais. Fala sobre sentir-se estrangeiro, visto que é um senegalês que o escreve na França, mas é também um senegalês na França o personagem principal. É um livro sobre outro livro: há um escritor, T.C. Elimane, que ninguém sabe por onde anda, mas escreveu uma obra seminal chamada “O labirinto do inumano”, a quem ninguém pode ficar indiferente, e dessa obra há poucos exemplares. Fala sobre as buscas dessa obra e de seu autor, da busca incessante de algo que nos escapa.
Diégane Latyr Faye, escritor e personagem principal da trama, persegue o rastro de T.C. Elimane. Durante procura esbarra com diversos personagens, alguns deles também escritores estrangeiros e negros, embora falantes de francês, configurando um doloroso deslocamento e evidenciando as ambiguidades herdadas pelos habitantes das antigas possessões africanas. Encontraremos no livro, permeando a temática, o estranhamento existencial da condição humana.
Há muitos obstáculos ao fazer uma apreciação desta obra prima. Desde o início tento definir o tema do livro, mas ele escapa. É um carrossel onde tento entrar enquanto gira. Sim, é sobre Literatura, mas ultrapassa um tema circunscrito. É sobre as angústias do escrever, sobre a busca infinda, retratada na busca do autor de “O labirinto do inumano”, mas é também sobre a vida em busca de um sentido. Vejo-me repetindo, em outras palavras, o que já foi dito. Uma citação talvez ajude:
A literatura surgiu para mim sob os traços de uma mulher de beleza aterradora. Disse-lhe, gaguejando, que a buscava. Ela riu com crueldade, respondeu que não pertencia a ninguém. Então me pus de joelhos e supliquei: Passe uma noite comigo, uma única e miserável noite. Ela desapareceu sem uma palavra. Lancei-me em seu encalço, cheio de determinação e arrogância: Vou te pegar, vou te sentar em meus joelhos, vou te obrigar a me olhar nos olhos, vou ser escritor! Mas sempre chega o terrível momento, no caminho, em plena noite, em que uma voz ressoa e te atinge como um raio; e ela te revela, ou te lembra, que a vontade não basta, que o talento não basta, que a ambição não basta, que ter uma bela caneta não basta, que ter lido muito não basta, que ser famoso não basta, que ter uma vasta cultura não basta, que ser sábio não basta, que o engajamento não basta, que a paciência não basta, que se embriagar de vida pura não basta, que se distanciar da vida não basta, que acreditar em seus sonhos não basta, que dissecar o real não basta, que a inteligência não basta, que comover não basta, que a estratégia não basta, que a comunicação não basta, que mesmo ter algo a dizer não basta, tampouco basta o trabalho duro; e a voz ainda diz que tudo isso é possível, é quase sempre uma condição, uma vantagem, um atributo, uma força, decerto, mas a voz logo acrescenta que, na essência, nenhuma dessas qualidades nunca é suficiente quando se trata de literatura, visto que escrever exige sempre outra coisa, outra coisa, outra coisa. Então a voz se cala e te deixa na solidão, na estrada, com o eco de outra coisa, outra coisa que gira e foge, outra coisa diante de você, escrever exige sempre outra coisa nessa noite de aurora incerta.
“Escrever exige sempre outra coisa”, diz a citação. Haverá “outra coisa”? Haverá uma originalidade radical? Há indícios, no romance, de que “O labirinto do inumano” copia, em parte, um outro livro. A suspeita permeia as reflexões de Diégane, trazendo à tona o fato que cada obra se inspira nas outras que a precederam. O que é, então, o plágio? Qual o critério, a distância da obra supostamente plagiada, para um texto ser considerado original? Tais problemas surgiram anteriormente na vida real, numa acusação ao escritor malinês Yambo Ouologuem, que depois desse evento retirou-se da cena literária. Mohamed Mbougar Sarr dedica seu livro ao colega africano. Além disso, o autor deixa claro, em sua obra, uma dívida ao escritor chileno Roberto Bolaños, em especial ao livro “Os detetives selvagens”. Como se vê, as referências se cruzam, uma narrativa leva a outra, e assim ao infinito do universo das Letras. E na vida, pode-se dizer?
Durante sua busca, Diégane cruza com diversos personagens, entre elas Siga D., uma escritora senegalesa de 60 anos, que conhece parte da história de T.C. Elimane. Ela é central na narrativa, uma referência para os escritores negros na Europa, quase um arquétipo materno. São muitos outro os personagens significativos que o leitor encontrará nesta obra, quase todos ligados direta ou indiretamente ao mundo literário. Cada um deles é retratado com maestria e tem seu lugar na trama – todos foram, de algum modo, impactados pela leitura de “O labirinto do inumano”, que serve de fio condutor para as vidas que se entrelaçam.
O livro poder ser lido como uma crítica ao mundo literário, com suas normas, seus egos inflados, seus ciúmes expressos ou disfarçados, sua ânsia de glória. Mas creio que é uma leitura restrita. O texto extrapola o círculo dos autores, editores e livreiros, alcançando dilemas existenciais mais amplos, como tentei mostrar nesta apreciação.
Mohamed Mbougar Sarr nasceu em 1990 no Senegal, filho de um médico. Foi educado em uma boa escola militar de seu país e na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris. Mora na França e sua língua é o francês. Escreveu “A mais recôndita memória dos homens” com menos de 30 anos. Ganhou, com esse romance, o prêmio Goncourt, a mais alta honraria literária da França.