A mãe

Luiz A. G. Cancello

Estava um dia agradável, as primeiras tardes de calor anunciavam o verão. Os filhos pediram para jantar no Mc Donald’s. Aquilo se tornava um tremendo desgaste. Desquitada, não tendo com quem dividir a responsabilidade pela decisão, entrava num conflito radical. De seus tempos de comunista ficara o horror ao imperialismo yankee, de sua fase hippie a aversão pela comida artificial, de sua modernidade o desagrado em contrariar sistematicamente as criancinhas. Uma confusão. Quase conseguiu convencer a menina a lanchar em casa, mas o moleque não arredava pé. Teria de dar um jeito, esses domingos à tarde eram mesmo um inferno. Todo o fim de semana o pai ficava com os dois. Devolvia-os às seis horas, ela dispensava o namorado às quinze para as seis, achava que não devia “misturar as coisas”. O companheiro novo ficava bravo, era separado da mulher mas não tinha filhos, até gostaria de conviver mais com os pequenos. Não conseguiam entrar em acordo.
Depois de ponderar prós e contras decidiu levar os dois à lanchonete. Oba, viva a mamãe, posso levar a Benê, não senhora, nada de amigas, vamos só nós. Foram a pé, seria difícil estacionar a Brasília na praia, além de economizar gasolina.
Ficou um bom tempo na fila da caixa, tudo tem de ser pedido antes, ela bem que preferia ser servida por um garçom. Mas este tempo já vai longe, são três anos de separação, a grana é curta, mesmo este passeio é uma extravagância. Conformou-se em pedir para si uns pedaços de frango à milanesa, que atendiam pelo nome de Chickenuts ou coisa parecida. Tentou se lembrar do inglês há tanto tempo esquecido, mas o significado da palavra não veio. Paciência, comeria sem o significado.
Tinha uma amiga que comparava o sabor daquela comida ao gosto do isopor. Procurou esquecer essa ironia, mastigou muito e devagar, recordando seus tempos de macrobiótica, o que diria seu orientador japonês se a visse agora. Mas as crianças parecem tão felizes, tanto catchup e mostarda a escorrer-lhes pelo queixo, o sanduíche maior do que a abertura possível da boca, enfim isso deve ter algum sentido para essa geração. Horrorizava-se com a uniformidade dos McDonald’s, ouvira na propaganda da televisão que o mesmíssimo cardápio com os mesmíssimos sabores percorrem o mundo, poderia estar comendo a mesmíssima coisa na Nigéria ou em Singapura. Que falta de imaginação, logo hoje em dia, cada vez mais as diferentes regiões querem ser independentes, veja-se o esfacelamento da União Soviética e da Iugoslávia, quantos povos querendo um mundo sem fronteiras, vai ver que isto pode ser um começo, apesar de tudo.
Agora já conversava com as crianças com alguma animação, tentava explicar as idéias que lhe passavam pela cabeça para o filho de doze anos. A filha de nove prestava mais atenção que o menino, sempre fora interessada nas coisas. Ela gostava do fascínio que as estórias de seus tempos de hippie e de revolucionária provocavam na menina, passado glorificado mas temível, tinha horror que a garota lhe seguisse os passos. Não se sentia preparada para suportar o que a sua mãe tinha aguentado. Os hamburgers desapareciam na garganta das crianças, ela ainda estava pelo meio de seu pacotinho de frango, resolveu deixar de lado os preceitos macrobióticos e engolir de vez a comida. Passou a mastigar mais rápido, sem dúvida dá uma volúpia gostosa, mas isto é pura gula, preciso me controlar que já estou acima do peso. Com muito custo deixou sobrar um pedaço, procurou não ficar olhando para esquecer a gana de comer mais, o esforço deixou-a ofegante. Vamos embora, ah não, a gente ainda quer sorvete, tá bom, sorvete de que, chocolate, ah, chocolate, acho que também quero um, amanhã controlo um pouco mais a alimentação, compenso este abuso. Olhou na tabela de preços afixada na parede, tem sorvete de baunilha, há quanto tempo não comia um desses. Pediu um com duas bolas, as crianças olharam uma para a outra com ar de gozação, ela viu mas fingiu não ver, embora não pudesse evitar uma cara de cumplicidade. Veio uma vontade louca de fumar, estava tentando largar o cigarro já há duas semanas, resistiu bravamente à tentação de pedir um para alguém. Isto não é um passeio, é uma tortura, disse em voz alta. O menino perguntou porque, ela nem tentou explicar.
Foram embora em passo acelerado, as crianças perguntando a razão da pressa, ela tentando controlar a respiração, a irritação e as lágrimas. Chegou em casa e despencou no sofá. Logo teve de levantar-se e procurar o despertador, amanhã é dia de escola e de trabalho. Acertava o ponteiro para as seis horas quando ouviu o filho ligando o video-game que o pai lhe dera. Voltou para a sala disposta a mandá-lo desligar aquela droga, espera só esta jogada, mãe, ainda tenho três vidas, mas que três vidas, já não basta esta, mãe, olha como eu passo de fase, ai esta fase que não passa. Quando se deu conta estava ali há uns vinte minutos, absorvida por um minúsculo lutador de caratê demolindo monstros terríveis. Vamos parar com essa porcaria e jé pra cama. Esperou as crianças deitarem, entrou no quarto e beijou cada um na testa, estava exausta, é difícil entender o amor que as mães têm pelos filhos.
O frango pesava no estômago, a tela da TV confundia-lhe a vista, o sorvete ativava sua enxaqueca, o cigarro ausente torturava-lhe a boca. Foi para a cozinha e abriu uma cerveja, dane-se o regime, desejou uma companhia indefinida, de preferência um homem desconhecido que a escutasse sem perguntar nada, alisando seus cabelos. Brindou em silêncio, erguendo o copo gelado em direção à rua, como se fosse uma fada brandindo a varinha mágica. Encantamento pelo avesso, abriu-se a porta dos fundos, por onde entrou o vento quente do verão. Voltou-se e foi ao quintal procurar uma estrela cadente, sempre é um meio de se pedir aos céus. O halo em torno da lua cheia escondia os outros astros. Isabel ofereceu cerveja a São Jorge, mas foi o dragão, eternamente ferido de morte, quem implorou aquele gole como seu último desejo.