A fluidez da verdade

Luiz A G Cancello

“A Amazônia é o pulmão do mundo”, disseram recentemente o presidente da França, o Secretário Geral das Nações Unidas, a modelo brasileira mais famosa e o melhor jogador de futebol do planeta, além de uma conhecida funkeira. A afirmação é falsa, mas a frase é constantemente repetida. Como disse alguém: “Vai me dizer que, como todo aquele verde, a floresta não produz oxigênio?”. Sim, produz e consome, mas, para saber disso, não basta um conhecimento superficial. É possível que esteja na memória das ilustres figuras algo que se aprende no ensino básico – as plantas produzem oxigênio no processo da fotossíntese. O fenômeno mental que provoca afirmações desse teor, simplificadas e errôneas, é chamado de heurística da disponibilidade. (Nota: O problema da Amazônia é grave, mas por outras razões.)
A heurística da disponibilidade é o ato de substituir a resposta de uma pergunta complexa por outra mais simples, com os elementos disponíveis no momento, na cabeça de quem responde. Em sua imediatez e aparente obviedade, é um recurso que não requer esforço mental. Traz conforto cognitivo, como se diz no jargão técnico. Os dados, insuficientes e/ou falsos, foram inculcados no repertório de respostas pela mídia, por preconceitos, crenças familiares e outros fatores. Diariamente ouve-se coisas como “O problema do Brasil é a corrupção”, “João teve câncer porque guardou muitas mágoas”, “Andar armado protege os homens de bem dos marginais”, “Eu sou assim por causa dos meus traumas de infância” “Aquecimento global é coisa de ecologistas” e centenas de frases prêt-à-porter. A heurística da disponibilidade é um dos tantos vieses cognitivos, padrões de distorção de julgamento que levam a uma apreciação pouco acurada dos acontecimentos. H. L. Menken, jornalista americano, disse que “Para todo problema complexo, existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.” Quando ele cunhou a frase, em 1920, o termo técnico que a define ainda não existia.
Um dos grandes problemas que se coloca é a permanência das crenças, quando confrontadas com os dados científicos. Mesmo que se mostre aos desavisados que o dinheiro da corrupção nem de longe salvaria o país, que não há prova alguma de que mágoas causem câncer, que o fato de possuir uma arma aumente em torno de 50% sua chance de morrer por arma de fogo, mesmo que se mostre as pesquisas feitas sobre cada um dos temas, desmentindo as supostas verdades, raramente aquilo em que acreditam será demovido. Em geral duvidam das pesquisas.
Há muitos tipos de vieses cognitivos. Julgamos qualidades morais dos outros por sua aparência, jurados tendem a ser mais complacentes com réus bonitos e simpáticos, corretores de valores consagrados não acertam muito além do acaso, entrevistas de emprego são fracas em predizer o sucesso dos funcionários. Tudo isso está documentado em inúmeros levantamentos e experiências.
É espantoso que o mundo funcione apesar dos enganos, autoenganos e falácias. Algum tipo de contrato entres os homens rege essa estranha harmonia. A realidade é fugidia, nossas explicações históricas baseiam-se em crenças duvidosas, temos uma capacidade pífia de prever o futuro. Ainda assim vamos construindo narrativas, acreditando nelas e seguindo a vida. Incrível e fascinante.

publicado no jornal A Tribuna, de Santos, em 01/09/2019