A Festa

Luiz A. G. Cancello

Fomos convidados para ir à festa de um casal amigo, pessoas muito simpáticas e informais. Comemoravam o aniversário dela e a inauguração do novo apartamento, em área nobre da cidade. No dia do evento, um sábado, minha mulher lembrou-se de que não havíamos comprado o presente. Claro que eu sabia disso, mas esperava que algum objeto lindo e barato aparecesse por mágica em nossas mãos. Infelizmente essas coisas não acontecem, logo teríamos de sair de casa para comprar o tal mimo.
– Sugiro algo para a casa nova, disse minha companheira.
Ela é arquiteta e decoradora de interiores. Casar com uma profissional dessa área tem suas vantagens, mas não era o caso. Eu simplificaria, um livro ou um CD sempre agradam.
– Um CD? Mas todo mundo baixa música da internet, quem vai querer um CD?
Desisti de impor minhas ideias, nem perguntei o que ela achava do livro. Saímos a pé, para explorar o comércio da vizinhança. Depois de andar por um pequeno centro comercial e ver não sei quantas vitrines, paramos numa loja, onde decidimos – ou melhor, ela decidiu – por um jogo de copos de vinho. Ali encontrei um amigo que também esperava a mulher fazer compras. No melhor do papo fui chamado:
– Acabei. Gostou? Passo o meu cartão ou o seu?
Terminei rapidamente a conversa, sobre livros que tínhamos lido. As mulheres se confraternizaram, pensei estar livre de compromissos, mas fui lembrado de algo dito no dia anterior, que eu tinha convenientemente esquecido:
– Agora preciso arrumar meu sapato, colocar um saltinho. Onde tem uma sapataria expressa?
Bem, lá fui eu para o Google, achei três. Estava com uma enorme preguiça de pegar o carro naquela manhã, mas fui vencido pelas circunstâncias. Fomos a cada uma delas. Em obediência à lei de Murphy, somente a terceira se dispôs a fazer o conserto a tempo e a hora. Dirigi até lá sem dar uma palavra, tentando manter uma cara aceitável. Ficava no pior shopping da cidade, movimentado e barulhento, garagem ruim, estreita e sempre lotada. Conseguimos uma vaga, enfim. Agora é enfrentar intermináveis corredores cheios de gente. Procura daqui, pergunta dali, elevadores pequenos e lotados, os pais com carrinhos de bebê têm preferência, claro, vamos de escada. O sapateiro não estava, ia chegar dali a pouco, poderíamos pegar o sapato em uma hora. Já eram duas horas da tarde. Gosto de comer cedo, reclamei. Sem chance:
– E a culpa é minha?!
Não, não era, ou era, deixei barato. Almoçamos em casa, a comida estava pronta desde ontem, voltamos ao shopping de garagem apertada, desta vez esperei-a na porta. Mais uma tarefa cumprida, agora eu ia deitar e fazer a sesta. Mas já eram cinco horas, a dona da festa queria que os convivas chegassem às seis, sei lá o porquê. Resolvi que chegaríamos às sete, ao menos eu tiraria um cochilo. Não consegui dormir bem, estava inquieto, por causa do dia atribulado. Ainda teria de tomar banho e fazer a barba. Lá fui eu, meio estremunhado. Enfim me arrumei.
– Espera só um pouco, estou acabando de passar a minha roupa.
Fiquei andando de um lado para o outro da casa, sem saber o que fazer, nem o que estava fazendo ali, ou no mundo, mas vamos em frente. Ou atrás.
Chegamos ao prédio, depois de dar algumas voltas procurando um lugar para o carro e acabar o périplo num estacionamento pago. Chuviscava. O porteiro, talvez estreante como o edifício, demorou para abrir o portão. Chegamos, meio úmidos, mas chegamos. Ela observava meu rosto, um misto de zombaria e resignação:
– Deixa de ser negativo. Vamos encontrar nossos amigos.
Estavam todos, anfitriões e convidados, no salão de festas. Um som alto decolava de uma mesa operada por uma DJ saltitante, balançando o corpo ao ritmo frenético de hits americanos e caribenhos. E eu, que gosto de samba e choro… Logo percebi que teria de falar alto para conversar com alguém. Haja garganta.
Sentamos ao lado de um casal, velhos conhecidos. Minha mulher foi entregar o presente para a aniversariante. Fiquei no meu lugar, sem perceber que deveria ter ido junto. Só muito depois, já em casa, atinei para a gafe. Naquele momento eu queria apenas me situar, tarefa bem complicada.
Todos circulavam, indo aqui e ali nas rodinhas. Sou um desajeitado para esse footing indoors, fiquei na minha. A certa hora o anfitrião quase me entendeu: Chegou perto e comentou: “Você é mais do petit comité”. Talvez, pensei, com perdão dos estrangeirismos. Ele disse a uma moça, sentada ao nosso lado, que escrevo livros de contos. Tal elogio (suponho que fosse) foi recebido com ar de condescendência pela convidada. Apreciei o empenho em me integrar no clima. Dei um sorriso amarelo.
Um dos convidados contava às pessoas de seu grupo um caso qualquer. Todos estavam interessados na história, riam e comentavam. Acho fantástica essa situação. Como será que o sujeito acha um tema tão cativante, e ainda por cima sabe contá-lo? Ou os outros se fingem de interessados, por educação? Nunca resolvi esse mistério.
Minha mulher, talvez cansada do meu silêncio, levantou-se.
– Vou ao banheiro. Vê se fica mais animado. Tenta conversar com o pessoal.
Difícil. Talvez se eu bebesse, mas não sou chegado em álcool, o que sempre gera alguma gozação. Estou acostumado com essas gracinhas, mas me enchem um pouco o saco. Tomei água. Bem mais tarde descobri que tinha sucos, aliás ótimos.
A comida estava divina. Fui pegando canapês, bolinhos, petiscos mil, até que o empanzinamento e a azia me avisassem que passei do ponto. Mais um dia para dormir recostado, lutando contra o refluxo.
Gostei da festa, juro. As pessoas eram agradáveis, os garçons simpáticos, tudo perfeito. Encontrei uma ex-aluna, que pareceu contente em me rever. Troquei sorrisos aqui e ali. Como sempre acontece, em certo momento muita gente começou a dançar. Eu sabia que minha mulher queria também ir para a pista, mas sou um desajeitado e (portanto) avesso a sacudir o corpo, ainda mais ouvindo música pop. Sempre rola um pequeno stress. Lá foi ela, com uma amiga nossa. Eu na mesa, observando tudo, dentro e fora do contexto, sem saber o que fazer ou o que sentia – ou o que era para sentir. Tentei heroicamente me acercar de uma roda, sem sucesso, O papo não rolou. Alguém me perguntou por que eu não dançava. Dei de ombros. Voltei ao meu lugar, ela veio e sentou-se ao meu lado, cansada e contente.
– Estava uma delícia.
Jurei que, desta vez, não seria eu a anunciar a hora de voltar para casa. É de bom tom esperar o parabéns, sei disso, mas o bolo não chegava. Por sorte algumas pessoas começaram a ir embora. Não me contive e sugeri, com muito cuidado, que fôssemos também. Para minha surpresa, fui acatado.
Na rua, em direção ao estacionamento, sob o chuvisco que persistia, senti um imenso alívio e uma dose de autopiedade.

Na manhã seguinte levantei para preparar o café. Enchi a vasilha de água e acendi o fogo. Depois da fervura derramei um tanto da água na garrafa térmica e fui rosqueando a tampa bem devagar. Antes do aperto total há um ponto em que a pressão interna do calor move a tampa para cima. Ela tende a sair, mas é presa pela rosca. O peso da própria tampa a faz descer e, durante um tempo, há um movimento de vai e vem ritmado, como se a garrafa térmica balbuciasse, viva, lembrando uma criança que mexe nos lábios com os dedos, fazendo blu-blu-blu. Aprecio extasiado o fenômeno, mais envolvente que toda festança do dia anterior. Ali me sentia inteiro. O fim de semana estava salvo.
Minha mulher acordou e veio para a cozinha. Dei-lhe um abraço carinhoso. Ficou surpreendida com meu excelente estado de humor, retribuiu o carinho. Pensei em convidá-la para dançar ao som da garrafa térmica, mas me contive.

Há tesouros enterrados que se desfazem sob a luz do sol.