A cueca

Luiz A. G. Cancello

Esqueceu a cueca no banheiro. Um banheiro coletivo, nessa casa em uma estação de águas, onde algumas famílias se reuniram para passar o fim de semana prolongado. Só percebeu o esquecimento na manhã do dia seguinte, quando levantou para escovar os dentes. Lá estava ela, a cueca, jogada no canto da pia. Teve um sobressalto parecido com o que acometia sua mulher, ao ver baratas. A cueca. Alguém a vira? Assim azul-marinho, etiqueta à mostra, 60% nylon, 40% algodão, mais artificial do que natural. Mais ou menos como ele se sentia naquela situação.
Contemplou-a, tranquilamente amassada, as dobras do pano lembrando as circunvoluções de um cérebro azul, há coisas que não mostram, na superfície, o que podem conter nas profundidades. Todas as sua vergonhas depositadas num pedaço de pano. O que pensaram os seus amigos (e as mulheres, as mulheres deles!)? Certamente alguém esteve neste banheiro. Seria muito improvável que uma peculiar fisiologia dos hóspedes da casa evitasse o vexame. Todo mundo levanta à noite para ir ao banheiro. E daqui a pouco, na mesa do café? Ele, o homem de meia idade, as têmporas descoradas sugerindo respeito, seu nome lembrado para gerenciar a firma, todo esse cabedal edificado a duras penas seria exposto ao ridículo. A cueca fora do lugar, eis a questão. Se alguém a visse na gaveta, convenientemente dobrada, talvez nem a notasse, perdida entre as outras roupas. Mas agora, contemplando-a deslocada de seu hábitat, Hélio imaginava a imaginação dos amigos, ele com a cueca azul-marinho amassada, daí seria um passo para imaginá-lo sem a cueca, até aí nada de mais, o problema não é a nudez, é ser despido por aqueles sorrisos sarcásticos. Uma cueca na pia, demolindo com seu estar ali toda uma imagem, esparramando seu caráter amassado pela compostura de um homem. A vida rachada pela imaginação da imaginação alheia, a contingência do acontecimento banal dissolvendo uma essência duramente constituída. Uma simples cueca denunciando a fragilidade do seu proprietário. Lembrou-se de quando era adolescente, gostava de andar sem cuecas, a mãe vivia lhe dizendo que, desse jeito desleixado, ele não iria ser nada na vida. E agora, quando conseguiu ter um carro do ano e um apartamento de três quartos, agora que comprava até cuecas coloridas, em suas tímidas investidas em busca da sensualidade, o que diria sua mãe? Mas por que diabos minha mãe vem agora à minha cabeça, tenho é de dar um jeito de me livrar da gozação do pessoal. Só espero que eles tenham o discernimento de não me ridicularizar em frente à minha mulher.
Uma série de pequenos pensamentos perdidos parecia estar se juntando, como as nuvens se aglutinam para provocar uma tempestade. Muitas vezes fora atingido por uma leve sensação de estranheza, de não pertencer totalmente aos lugares que frequentava pelas diversas imposições da vida profissional e familiar, apesar de sua reconhecida simpatia e de uma apreciada habilidade para cantar boleros e sambas-canção. Mas nunca essas impressões, antes facilmente afugentadas, haviam se mostrado em conjunto e com tanta força como agora. Tentou consolar-se, todos na casa eram seus amigos, ele sempre vivera rodeado de pessoas, era tão solicitado para reuniões sociais e para viagens como esta, por que seus companheiros iriam colocá-lo numa situação constrangedora?
Mas não conseguiu enganar-se. Voltou à roupa íntima no mármore da pia, decomposição postada na lápide sem nome, sujeita ao frio da pedra, aos respingos das mãos lavadas e dos bochechos após a escovação dos dentes. Quem foi ao banheiro esta noite? Os olhos dessa pessoa o amedrontam, é dela o olhar demolidor a ser enfrentado na mesa do café, dali a instantes. Demolição sutil, é claro, todos os hóspedes são pessoas educadas. Tudo se passará como se Hélio continuasse o mesmo, mas ele sabe — só ele sabe — que não vai ser assim. Será de agora em diante aquele da cueca, estará sempre naquele banheiro, respingado pela displicência dos usuários da pia.
Saiu do banheiro e deitou-se na cama, esperando a hora decisiva. Teve uma vontade enorme de contar seu drama para alguém. Consultou mentalmente a lista dos seus conhecidos e verificou que, àquela hora da manhã, ninguém receberia de bom grado um telefonema sobre uma cueca esquecida no banheiro. Percebeu que seria muito difícil explicar a uma outra pessoa a gravidade da situação. Sentiu-se profundamente incompreendido e injustiçado, mas por que logo ele, um sujeito amigo, esforçado, sem vícios, que pecados teria cometido para estar passando por isso? Passou em revista a sua vida, começando por seu primeiro dia de trabalho, ponto de partida preferido de seus momentos autobiográficos. Sempre foi empregado da mesma firma. Cultivou a constância e a persistência desde cedo. Do início como office-boy passara a escriturário, dali a encarregado, depois a subgerente e agora estava a um passo da gerência. Havia a possibilidade de comprar algumas ações da empresa, tornando-o sócio minoritário, mas já com assento na assembleia deliberativa. Sem dúvida seu sorriso aberto (hoje um pouco mais discreto) e sua facilidade em fazer amigos haviam contribuído para isso. O sucesso o levara a vestir-se melhor, adquirir hábitos mais refinados, muitas vezes resistindo a seus antigos impulsos de tirar os sapatos nas reuniões, de desabotoar os botões de cima da camisa, de comer “sem modos”, de falar todos os palavrões colecionados na época em que era um modesto e descomprometido funcionário. Casara com Sônia, moça de boa família, pai empresário, teve de provar ao sogro sua capacidade de vencer na vida. Agora, junto com o efeito respeitável dos cabelos grisalhos e da curva do abdômen, estava numa posição confortável, havia constituído família, um filho de quatorze anos e uma filha de dez, devidamente planejados. Ainda bem que não estavam passando este fim de semana com os pais, o que diriam ao saber da cueca cristalizada na pia, não conseguia continuar seu retrospecto sem que a cueca se intrometesse, para sempre ali no banheiro, esse último refúgio da intimidade. Sentiu-se invadido, devassado, os olhos que viram a cueca rastreavam seus pensamentos mais escondidos, as vergonhas mais bem guardadas. De nada adiantava omitir de suas recordações alguns detalhes mais escabrosos, estava exposto ao escárnio geral, mas que azar, no dia-a-dia tudo se passa como se não pensássemos bobagens, como se nada de escuso nos invadisse a mente, como se não existisse esse lugar da casa, é de bons modos não se alardear a ida ao banheiro. Até mesmo o barulho da descarga, se é alto, as pessoas fingem que não escutam, fingimos todos que ninguém faz cocô, xixi ainda vai, mas porque tudo isso me vem à cabeça, parece que estou ficando louco.
De repente um sobressalto interrompeu sua história. Deu um pulo da cama, a mulher resmungou qualquer coisa, ainda dormia. Conteve os movimento para não acordá-la, mas estava muito exaltado, havia esquecido de trazer a cueca para o quarto. Na sua estupefação deixara-a no mesmo lugar. Abriu a porta e precipitou-se para o corredor. Ainda era muito cedo, todos estavam deitados. Foi até a pia só de meias, não calçou os chinelos para andar o mais silenciosamente possível. Pegou a cueca fazendo uma pinça com o polegar e o indicador, mas porque esse nojo, a cueca é minha, assim já é demais. Levantou o pano azul-marinho amassado e percebeu, embaixo dele, o bilhete que mudaria sua vida. Estava escrito com lápis de sobrancelha num pedaço de papel higiênico. Dizia apenas: “Eu vi”.
Voltou para o quarto arrasado. Sônia ressonava, virada para a parede. Pela primeira vez Hélio sentiu-se só, tremendamente só.

Este conto está na página 47 do livro “Dia-a-dia: fragmentos”