Luiz A G Cancello
O rapaz está inquieto. Mexe-se, não está à vontade, olha para todos os cantos com temor, como se alguém observasse seu corpo deitado. Logo a porta se abre e a mãe entra no quarto. Há um silêncio, os olhares se cruzam, percebe-se uma cumplicidade. Ele fala, hesitante.
– Eu sei que você não acredita, mas ela está aqui todos os dias, debaixo da cama.
– A mesma cobra?
– Não sei se é a mesma, acho que é.
– Tem tomado seu remédio?
– Sempre, sem falta.
– Você fala essas coisas para seu psicólogo?
– Falo. Ele deve estar cansado de ouvir a mesma história.
Há nas famílias certos diálogos automatizados. Depois da primeira frase é fácil adivinhar a sequência das falas, como se as palavras assumissem o comando, estivessem ali para serem ditas, os humanos sendo apenas veículos para os sons inevitáveis. Para quem ouve de fora é maçante, para os falantes pode ser um conforto.
– Meu filho, não sei mais o que fazer.
– Fica aqui comigo mais um pouco, até eu dormir.
– Certo. Procura se acalmar.
– Não é fácil. Eu até sei que não tem cobra nenhuma aí embaixo, mas não consigo acreditar totalmente.
– É a sua imaginação.
– Claro que é, mas não consigo me livrar dela.
Há meses o ritual se repete a cada noite. Não é comum as mães irem ao quarto de um filho crescido, mas nesta casa a regra é transgredida. A mulher já espera sua hora de sentar-se à beira da cama do jovem, vê-se pela indumentária, está de pijama e com os dentes escovados, é possível sentir o hálito. Preparou-se para o momento. O marido ronca no outro quarto, não se pronuncia, a não ser para reclamar do preço dos tratamentos.
– Tentou rezar?
– Eu não aprendi a rezar. Você e o pai nunca foram disso.
– É verdade. Talvez tenha sido uma falha na educação que te demos.
– É melhor não começar a falar nisso.
– Sei que você tem muitas mágoas, mas fizemos o melhor possível.
– Olha só o resultado. Um merda, com medo de uma cobra que nem sei se existe.
No final da semana, num programa dominical muito popular, um psicólogo falou sobre doença mental e alucinações. Raquel estava na sala quando apareceu o tal sujeito na televisão, sugerindo que os familiares de pessoas com quadros delirantes, se quisessem se comunicar com elas, “entrassem” nas fantasias, ao invés de chamá-las insistentemente à realidade. A julgar por um olhar distante e logo depois focado no filho, como quem está pensando longe e volta de repente com uma ideia, é bem possível que a mãe tenha ligado os pontos. Foi com um ar de esperança que continuou a conversa.
– Acho que vou bater um papo com essa cobra.
– Mãe, você tá maluca.
– Uai, quero saber por que ela resolveu morar aí e te assustar todas as noites.
– Mas ela não me assusta. Fica quieta. Eu é que tenho medo.
– Vamos tirar isso a limpo agora mesmo.
– Mãe, por favor, não briga com ela. Não me fez nada.
Há conhecidas histórias em que o torturado se apaixona pelo torturador. O fascínio é um sentimento ambíguo, onde o medo e a atração se anulam mutuamente, deixando o fascinado numa paralisia quase gostosa, quase insuportável. Desde os tempos bíblicos tenho esse papel. Rio-me dos humanos, mas tenho de ser discreta, não quero ser ouvida. Preciso do silêncio para me manter aqui, entre o chão e as almas, onde é o lugar dos monstros.