Apreciação de Luiz A G Cancello
Eu diria que “A Cabeça do Santos é uma história mirabolante. Segundo o dicionário, “Mirabolante” é algo “extravagante e fantástico; maluco”, delirante, significando também “excessivamente vistoso; espalhafatoso, espetaculoso, aparatoso”. Ao menos os primeiros adjetivos são apropriados ao livro.
Os fatos se sucedem quase como um thriller. Há poucas metáforas. A autora não se detém a descrever paisagens ou pessoas. Para estas, um ou dois traços bastam, no meio da narrativa dos fatos, mas é suficiente para o leitor fazer um bom retrato dos personagens.
A autora fez um curso de escrita com Garcia Marques, em Cuba. O livro namora com o Realismo Fantástico, mas creio que se desenrola numa narrativa bem tradicional, como tento mostrar a seguir, a partir da ideia do percurso do Herói.
Se pensarmos nos estágios da Aventura do Herói, conforme codificados por Joseph Campbell, veremos que a trajetória de Samuel passa por um caminho semelhante. Recordemos esses estágios:
Mundo Comum / O Chamado para a aventura / Recusa do Chamado / Encontro com o Mentor / Travessia do Limiar / Testes e Antagonismos / A Grande provação / A Recompensa / Viagem de volta / Limiar do retorno / Ressurreição / Retorno ao mundo comum /
Samuel é chamado para a aventura pelos últimos desejos da mãe. Ele terá de procurar a avó e o pai em outra cidade, além de acender velas para o padre Cícero, para São Francisco e Santo Antonio. Vai de má vontade, pois não é homem de fé. O percurso é penoso. Enxotado pela avó, dorme na cabeça de um santo, parte de uma estátua para Santo Antonio nunca acabada, Lá encontra Francisco, um menino, que podemos chamar de seu mentor (na tradição, o mentor é uma pessoa mais velha e sábia, mas aqui cabe a exceção), pois lhe propõe as próximas etapas da sua aventura (que peca por alguma malandragem). Samuel passa por momentos bons e ruins, mete-se em encrenca pesada com pessoas poderosas, é ameaçado de morte, mas sai ileso. Há uma recompensa, sem dúvida, embora o caminho de volta esteja apenas esboçado no livro. Talvez por isso o final pareço um tanto abrupto.
Eu diria, a esta altura, que Samuel é um misto de herói e anti-herói. O mentor é um menino, sua aventura é um tanto desonesta, o que contrasta com o percurso tradicional. Mas tudo é permeado de algo mágico, e um fato se destaca: Samuel ouve, com muito nitidez, uma voz que canta. Ele escuta essa canção inebriante vindo de um dos cantos da cabeça do santo. Dentro de uma sucessão de acontecimentos, rápidos e às vezes desvairados, essa voz de destaca como uma constante, e vai dar a linha mestra da narrativa.
O livro prende, principalmente do meio para o final. A leitura não encanta pela forma, mas pelo enredo, pela sucessão de peripécias. É também um retrato bem construído de uma pequena cidade nordestina, com sua fé, seu povo simples e uma onipresente classe dominante e corrupta. A partir desses elementos a autora consegue escrever uma história envolvente e… mirabolante.