Luiz A G Cancello
Um dia descobri que as pessoas têm assinaturas. Eu teria uns 7 ou 8 anos. Depois de fazer um número exaustivo de perguntas à mãe, afinal como é que alguém inventa sua assinatura, sentei-me à mesa para inventar a minha. Tentei diversas formas, sempre mostrando à incansável figura materna, perguntando se o rabisco estilizado estava bonito. Ela tentava me explicar que as coisas não são bem assim, a assinatura vai saindo naturalmente com o correr dos anos e a necessidade ainda distante de firmar documentos, mas eu não ouvia. Queria deixar no papel, desde já, a marca definitiva.
Alguma coisa me distraiu e esqueci o assunto. Aos poucos, a vida e a burocracia obrigaram minha mão a elaborar um jeito aceitável de assinar o nome. Para mal dos pecados, como dizia a genitora, havia na família uma famosa lenda. Vou contar.
Meu avô materno era guarda-livros, hoje chamado de contador, de uma grande empresa. Sua assinatura era famosa, contava a mãe, com orgulho. Durante muitos anos, podiam ser sobrepostas uma à outra e eram sempre iguais, linhas e curvas idênticas. Essa peculiaridade era proclamada como se traduzisse um traço de caráter, muito além dos traços físicos que a pena depositava no papel. Sugeria um homem firme, honesto, resoluto, com princípios bem estabelecidos. Chegava a vê-lo com a caneta na mão, traçando solene os contornos de sua identidade nos livros contábeis, num gesto preciso. Pura imaginação. Lembro-me dele como um velhinho discreto e simpático, de suspensórios, cuidando dos seus passarinhos.
Fiquei com a história na cabeça. Sempre quis ter uma assinatura assim, com os contornos constantes, permanecendo durante os anos fiel a si mesma e a mim, um homem traduzido por ela, em sua retidão. Mas não consegui a proeza. Seja por inabilidade motora ou por falha de caráter, minhas assinaturas não coincidem quando superpostas.
Cada vez que minha mãe repetia a lenda familiar eu me reportava à época em que o dedão era besuntado com tinta preta e calcado no papel. A assinatura também ficava sempre igual, pensava, despeitado. Chamava-se digital, palavra que mudou muito seu significado, como se verá.
Neste ano, minha contadora sugeriu que eu comprasse um certificado… digital, para ter uma assinatura eletrônica. Explicou-me como fazer. Acessei o site indicado, preenchi os dados pessoais, paguei um boleto e agendei uma entrevista on-line para fazer a biometria e outros detalhes. O processo ocorreu sem problemas. Experimentei assinar um primeiro documento, deu certo. Fiquei orgulhoso, confesso.
Finalmente eu teria uma assinatura sempre idêntica, mil linhas iguais, sem diferença alguma. Poderia superpô-las ao infinito, coincidiriam nos mínimos detalhes, um fenômeno próximo à perfeição. E mais – minha destreza motora e meu caráter estavam livres da tirania do grafismo.
Já não cuidamos de passarinhos, é outra nossa relação com os animais. Também descuidamos da caligrafia, cultivamos a rapidez no teclado. Os suspensórios caíram em desuso. O mundo antigo se esfacelou, outros valores e habilidades se impuseram. Dispensamos a assinatura, agora usamos o certificado digital.
Mas não é tão simples, algo escapa da explicação linear. Ao firmar um documento me sinto um trapaceiro, traindo a memória do meu querido guarda-livros. Convivo com uma culpa difusa, não consigo defini-la e nem sei como expiá-la.
Coloquei um porta-retratos com as fotos do avô e da mãe na mesa do computador, para evitar a tentação do esquecimento.
Crônica publicada no jornal A Tribuna, em 22 de agosto de 2024.