Apreciação boquiaberta de Luiz A G Cancello
Estamos diante de um livro extraordinário. Há muito que comentar. Escolho a forma da narrativa.
A história é contada por um chi, um espírito protetor do protagonista, a quem chama de “seu hospedeiro”. O relato é feito para os deuses; o chi quer que os seres superiores saibam o que aconteceu com seu hospedeiro e quer justificar o papel dele, o espírito guardião, no turbilhão dos acontecimentos. A perspectiva é genial, pois o contador da história fica a meio caminho entre o narrador onisciente e o protagonista, dando ensejo a recursos narrativos difíceis de encontrar em outra configuração.
No decorrer da leitura vamos entendendo que o chi não é onipotente. Ele pode induzir pensamentos, tentar orientar, mas não tem poderes para cercear a liberdade do homem. A cosmologia Igbo, o povo da Nigéria a que o personagem principal, pertence, é vasta e complexa, cheia de nuances psicológicas refinadas. A descrição das peripécias de Chomso é permeada por reflexões do chi sobre a natureza humana:
(…) meu hospedeiro ficou perturbado com aquilo. Ainda que eu, como qualquer outro chi, costume deixar meu hospedeiro usar os talentos que escolhi para ele no salão de talentos e interferir minimamente em suas tomadas de decisão, nesse caso eu queria interferir. Mas fui impedido para pelo recurso que ele escolheu: a eficiente ferramenta do silêncio. Pois vim a aprender que, quando a paz de uma mente humana é ameaçada, em geral a resposta inicial é um silêncio benigno, como que de uma mente atônita por um golpe paralisador cujo impacto precisa deixar dissipar. E, quando a dissipação se concluiu, ele murmurou:
– Certo.
O enredo é muito rico. Fala de um amor (quase) impossível e dos sacrifícios que um homem se propõe a fazer para concretizá-lo, contra todas as dificuldades que o mundo coloca, principalmente o preconceito de classe e as fraquezas humanas. As descrições dos ambientes naturais e humanos têm a força de trazer os lugares e seu clima à presença do leitor. Dificilmente alguém deixará de se emocionar com as idas e vindas de Chomso, um criador de galinhas, em busca de seu ideal amoroso – uma mulher universitária de classe alta. Ao mesmo tempo que expõe essa busca tenaz e desesperada, o livro mostra como o destino pode ser alterado por acontecimentos fora do controle do agente, traçando um destino diverso daquele planejado.
Quando alguém que gosta de ler se depara, na página 26, com o trecho a seguir, sabe que o esforço de seguir em frente valerá a pena:
Durante aqueles dias, tio Bonny, apesar de ser gago, encheu a cabeça do meu hospedeiro de palavras. A maior parte do que disse girava ao redor dos perigos da solidão e da necessidade de uma mulher. E suas palavras eram verdadeiras, pois já vivi entre a humanidade o suficiente para saber que a solidão é um cão violento que late incessantemente na longa noite da tristeza. Já vi isso muitas vezes.